Fernando Yunes, novo vice-presidente sênior do Mercado Livre: malha logística própria é essencial para reduzir os prazos de entrega – mas sem lojas físicas (Mercado Livre/Divulgação)
O mundo era outro quando o executivo Fernando Yunes foi convidado a conversar com as lideranças do Mercado Livre. A América Latina ainda tinha alguns poucos casos de coronavírus e as quarentenas começavam a ser implementadas. Em uma das conversas, na Argentina, terra-natal da companhia, Yunes voltou ao Brasil dias antes de a fronteira fechar, em março. “Por pouco não fico preso lá”, brinca. Desde então, o Brasil passou de 1 milhão de casos de coronavírus e colocou mais da metade da população em quarentena. O Mercado Livre, por sua vez, se viu no centro de uma pequena revolução no comércio eletrônico da região, com milhões de clientes comprando pela internet pela primeira vez e experimentando categorias antes com pouca penetração online, como saúde e bens de consumo.
É neste “novo mundo” que Yunes assumiu no último mês o cargo de vice-presidente sênior do Mercado Livre, com a missão de coordenar a operação no Brasil. Com crescimento de mais de 100% em algumas categorias em meio à pandemia, é um desafio pouco trivial manter rodando um ecossistema que envolve mais de 250 milhões de produtos, 40 milhões de clientes, 11 milhões de vendedores e um terço do comércio eletrônico brasileiro.
No esforço de expandir a logística própria e melhorar seus prazos de entrega e a penetração em todo o Brasil, o Mercado Livre anunciou um novo centro de distribuição na Bahia, o primeiro no Nordeste. O espaço se soma aos centros em Louveira e Cajamar, em São Paulo. Há conversas para um outro espaço na região Sul. Hoje, mais de 50% dos produtos vendidos no Mercado Livre têm entrega própria — um papel que antes pertencia a parceiros como os Correios. “A ideia é encher esses galpões, não temos um gargalo de espaço”, diz Yunes.
O executivo concedeu à EXAME sua primeira entrevista no Mercado Livre, após mais de dois anos como presidente da empresa de pagamentos por radiofrequência Sem Parar. Yunes falou sobre a expansão do Mercado Livre, a operação sem lojas físicas, o processo para deixar de lado a imagem de vendedora de produtos usados e a acirrada concorrência no varejo brasileiro. Leia abaixo os principais trechos da conversa.
Como foi o processo de conversa com o Mercado Livre, e às vésperas da pandemia? O que te atraiu ao se juntar à empresa?
Eu estava feliz no Sem Parar, estávamos fazendo várias parcerias, indo super bem. Sempre tive ciclos maiores nas empresas, só na Whirlpool foram dez anos, na Bain foram cinco, eu estava focado em uma jornada mais longa no Sem Parar. Sempre admirei muito o Mercado Livre pela vanguarda, pela inovação, mas fui fazer uma conversa sem muita expectativa. Mas vi como uma oportunidade de aprender muito com a empresa, aportar o que aprendi e nos ajudar a seguir firmes e fortes na liderança do mercado brasileiro. É um cenário muito competitivo no Brasil, uma competição extremamente agressiva. Temos esse propósito muito inspirador, de democratizar o comércio e o acesso a dinheiro e serviços na América Latina. E tudo com uma escala enorme, quem vê de fora talvez não imagine a dimensão. Temos mais de 250 milhões de produtos, se somar os dois princpais concorrentes dá 48 milhões.
O que mudou para o Mercado Livre em meio à pandemia? O que a empresa já ia fazer que foi acelerado e o que precisou ser feito que não estava nos planos?
Da estratégia, não diria que houve uma grande mudança. O Mercado Livre está dois, três passos à frente da concorrência. O que aconteceu foi uma intensificação dos planos que já tínhamos. Uma foi itens de supermercado, que era um plano do terceiro trimestre e foi antecipado para o primeiro e o segundo trimestres. Um grande avanço foi de logística. Mesmo com um aumento de volume tão forte, estamos conseguindo melhorar os prazos de entrega. Mais de 70% das vendas feitas dentro da logística de ponta a ponta do Mercado Livre passaram a chegar em menos de dois dias. Nosso time está trabalhando com um amplo senso de urgência para que possamos aproveitar esse crescimento do comércio eletrônico.
Na frente de logística, o Mercado Livre vem aumentando a capacidade de estoque próprio, que é uma estratégia diferente do que era no começo da empresa. É uma frente na qual vocês vão continuar investindo?
A logística é um tema estratégico para nós. Vamos seguir nessa linha de trazer o estoque dos sellers [vendedores da plataforma] para dentro. Mais de 50% dos produtos já saem do armazém de um centro do Mercado Livre. Isso há alguns anos era 10%, 15%. E agora vamos abrir um centro de distribuição (CD) na Bahia, e com isso vamos avançar ainda mais em produtos estocados dentro de casa. A gente gostaria de ter 100% em casa. O CD de Cajamar tem 110.000 metros quadrados, é o tamanho de 17 Maracanãs. A ideia é encher esses galpões, não temos um gargalo de espaço. Todos os vendedores são super bem-vindos para ter produtos com a gente.
Por que apostar na estratégia de estoque próprio?
Os centros próprios foram fundamentais para chegarmos nesse patamar de 70% da entrega em até dois dias. Essa entrega eficiente gera um ganho de conversão de vendas e lealdade dos clientes. E vamos avançar ainda mais. Chegaremos no fim do ano com uma taxa ainda maior, esse é o foco do time.
Também temos como foco trabalhar bem nossa marca, para que as pessoas deixem para trás essa percepção antiga de que o Mercado Livre tem somente produto usado, um indivíduo vendendo para o outro. Temos 11 milhões de vendedores no marketplace, vai desde grandes empresas como BMW, Brastemp e Havaianas, a um artesão do interior que faz sua arte e tem acesso ao Brasil todo com a nossa plataforma. Temos um plano agressivo para crescer entre os pequenos empreendedores, que a gente chama de long tail, que vendem pouco. Mas, ao mesmo tempo, as marcas mais desejadas do Brasil trabalham conosco, montadoras, empresas de eletrodoméstico, eletrônicos. A empresa avançou muito rápido e não é mais aquela empresa de 15 anos atrás.
Além dos três centros de distribuição, o da Bahia a ser inaugurado, como está a estratégia de pontos avançados de distribuição para as demais regiões?
Já são vários, vamos fechar o ano com 2.500 pontos de drop-off, para que os vendedores deixem seus pacotes.. Nesses pontos queremos, com inteligência artificial, entender quais produtos há em quais regiões, e avançar como um local em que os vendedores podem deixar produtos, por exemplo — e aí a nossa logística ou traz isso para centros maiores ou do próprio ponto avançado já entrega para o cliente. O que a gente não quer é que o cliente venha a algum lugar pegar alguma coisa. Até podemos dar essa passo em alguns locais, se fizer sentido. Mas o foco é que esteja na casa do cliente o mais rápido possível.
O uso de lojas físicas como ponto avançado de distribuição e estratégia multicanal vem sendo muito elogiado no varejo. Mas o Mercado Livre não tem lojas físicas. É algo que vocês pensam em mudar eventualmente?
Não enxergamos da mesma forma que a concorrência, que coloca isso [lojas físicas] como uma vantagem. Quem era varejo tradicional e quer dar um passo para se tornar digital, conta com as lojas físicas que já estão construídas, mas tem ativos, depreciações, custos. E acaba usando aquele ponto da melhor forma possível, indo além do objetivo inicial de vender para as pessoas daquela região. Uma empresa nativa digital, como nós, como não tem as lojas, tem as opções de ter as lojas se quisermos, nos lugares que quisermos. Mas vemos que o modelo ideal não é ter loja. O cliente não quer ir à loja para retirar nada. Ele quer receber em casa, no menor prazo possível. Mas, se o processo de receber em casa tiver um prazo longo, o cliente não quer esperar dez dias, então vai até a loja. O que a gente tem feito é investir em armazéns extremamente completos e reduzir nossos prazos. Uma inspiração é o mercado americano, e também temos inspirações no modelo chinês, que têm suas empresas com braços fortes de finanças. Então, o Mercado Livre acaba sendo essa combinação. Vemos que, na logística, os vencedores no mundo não têm rede de lojas.
Como vem sendo, dentro da plataforma, as ondas de comportamento dos consumidores, passada aquela corrida aos itens de saúde do começo da pandemia? Vocês enxergam como sustentável esse crescimento do e-commerce?
Foi uma mudança de patamar do e-commerce brasileiro na casa dos últimos meses. A penetração saiu da casa de 5%, 6%, para mais de 12%, 13%. A gente não sabe para onde isso vai aterrissar quando as lojas físicas voltarem a operar a todo vapor, mas certamente não volta para o patamar de 5%. Talvez fique em 8%, 9%. Mas já é uma aceleração do que vinha acontecendo, e achamos que é um movimento sem volta. As pessoas não vão voltar aos hábitos que tinham antes. O Mercado Livre atingiu um terço dos celulares brasileiros e chegamos a mais de 33% de participação no mercado. Um produto a cada três vendido no e-commerce do Brasil vem do Mercado Livre.
Internamente, no início a saúde cresceu muito, e o todo caiu em volume, porque as pessoas pararam de comprar o que não era essencial. Logo depois, veio a necessidade de se adaptar à rotina em casa. Os produtos domésticos subiram mais de 160%, também houve muita compra de móvel, cadeira de escritório, laptop, equipamentos para casa. Logo depois veio o fitness, que subiu mais de 60%. Hoje jogos também vêm subindo.
Com o avanço das categorias de bens de consumo, ao mesmo tempo em que a frequência de compra aumenta, o ticket médio diminui, e as empresas podem ter um gasto maior para a entrega. Como vocês enxergam esse desafio?
Sim, quando você chega a 250 milhões de possibilidades de produtos, vai haver compras menores. Mas o cliente também acaba comprando alguns vários produtos desses de ticket mais baixo, então o meu ticket médio por venda não caiu tanto. Mas sim, houve uma queda. O que temos para esse cenário é um ecossistema de parceiros logísticos, pequenos empreendedores logísticos, e os nosso centros e pontos de distribuição. Então temos essa cadeia nacional para essas entregas menores.
Você citou as empresas chinesas, que tem uma frente forte em finanças. Estamos falando nesta semana em que o WhatsApp anunciou uma opção de pagamentos no Brasil. Alguns analistas citaram o Mercado Pago, fintech do Mercado Livre, como uma das empresas capazes de lidar com essa concorrência devido ao ecossistema da companhia. Esse avanço da concorrência preocupa?
Não ficamos olhando o preço da ação para saber se estamos fazendo a coisa certa. Mas as ações subiram 6% depois do anúncio do WhatsApp, e essa foi a leitura dos investidores. Entra um player grande, que é um competidor, mas que também tem possibilidade de atrair mais clientes para o mercado meio de pagamentos digitais. Se não temos parceria, esse é um dos caminhos. E o pagamento é só um dos serviços do Mercado Pago, temos todas as formas de pagamento, crédito para as empresas, investimento que rende 100% do CDI. Oferecemos serviços para as duas pontas, empresas e clientes. Estamos avançando para mais funções, uma série de soluções na conta digital. Leva tempo criar um negócio amplo e complexo como esse. Vemos agora outros concorrentes começando a se mobilizar nesse tema financeiro, mas é algo que o Meli já faz há dez anos, vem de inspiração da China. Os fundadores são extremamente visionários e conectados com o que há de vanguarda no mundo.