Capa do álbum 'Burguesia', de Cazuza Marcos Bonisson ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Burguesia, Cazuza, 1989 ♪ Com valentia inédita na história da música brasileira, Agenor de Miranda Araújo Neto (4 de abril de 1958 – 7 de julho de 1990), o Cazuza, afrontou a cara da morte ao longo de 1989 para gravar e lançar Burguesia, último álbum de carreira fulgurante iniciada no alvorecer da década de 1980. Já bastante debilitado por doenças oportunistas decorrentes da infecção do vírus da Aids, detectado em teste feito pelo artista em 1987, o cantor e compositor carioca passou meses internado em clínica abastada da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ) naquele ano de 1989. De lá, Cazuza saiu entre março e junho de 1989 – muitas vezes de maca – para ir aos estúdios cariocas da gravadora Polygram dar forma ao álbum Burguesia. Em “esforço sobrenatural”, como caracterizaria posteriormente Lucinha Araújo, a ativista mãe de Cazuza, o artista gerou álbum urgente, orquestrado pelo próprio Cazuza – com produção musical do pianista João Rebouças – e lançado em 21 de agosto de 1989 no formato de LP duplo. Nada menos do que 20 músicas foram distribuídas pelos quatro lados dos dois vinis embalados em capa dupla. Em repertório majoritariamente autoral, nada menos do que 16 dessas 20 músicas traziam a assinatura de Cazuza com parceiros habituais – Frejat, George Israel, Leoni e Lobão – e com parceiros ocasionais, compositores que musicaram algumas das muitas letras distribuídas por Cazuza entre as recorrentes internações em hospitais. Pelas condições em que foi produzido de forma heroica por Cazuza, o álbum Burguesia resultou digno e, em muitas faixas, interessante sem evidentemente fazer frente no todo ao antecessor álbum de estúdio Ideologia (1988), obra-prima da discografia solo de Cazuza, marco da maturidade do artista que, neste disco de 1988, soube dialogar com a MPB sem perder a atitude contestatória do rock. Cazuza tinha uma ideologia para viver e a expôs de forma tão pueril quanto sincera no jorro verborrágico da letra da música-título Burguesia, parceria com George Israel e com o irmão de fé Ezequiel Neves (1935 – 2010), que, em prova de sintonia transcendental com Cazuza, também saiu de cena em um 7 de julho, exatamente vinte anos após o amigo ter partido em um trem para as estrelas. Infelizmente atual no Brasil de 2020, a letra de Burguesia foi cantada por Cazuza como cuspe atirado na cara da elite nacional com a ambiência roqueira que pautou todo o lado A do LP 1, amplificada pelo toque incisivo das guitarras de Paulo Ricardo Rodrigues Alves, o músico fluminense conhecido como Paulinho Guitarra. A pegada roqueira das gravações de Nabucodonosor (George Israel e Cazuza), Tudo é amor (Laura Finocchiaro e Cazuza) e Garota de Bauru (João Rebouças e Cazuza) lembraram que Cazuza tinha vindo ao mundo artístico em 1981 como vocalista de banda, Barão Vermelho, hábil na feitura de rock stoniano, com incursões pelo blues. Mantendo a pressão dos arranjos, o lado B do LP 1 encadeou batidas funkeadas nos registros das músicas Eu agradeço (George Israel, Nilo Romero e Cazuza) e Eu quero alguém (Renato Rocketh e Cazuza), enérgica composição de letra exagerada, prova de que a fragilidade física de Cazuza jamais atenuou a força do verbo deste poeta dos bares e banheiros sujos, mas limpos da hipocrisia humana. Essa poesia urbana, intensa, já se manisfestara no primeiro vigoroso álbum solo do artista, Cazuza, lançado em 1985, no rastro da ruidosa saída do cantor da banda Barão Vermelho. Só que o rock do Barão nem sempre saiu de Cazuza. Parceria de Cazuza com Leducha e com Lobão, cúmplice do amigo nos prazeres da vida louca vida, Babylonest sobressaiu na oscilante safra autoral do álbum Burguesia por ter sido apresentada com a virulência desse tal de rock'n'roll. Lobão também figurou no disco como parceiro de Cazuza na canção Azul e amarelo, em cuja letra Cazuza parafraseou verso de Cartola (1908 – 1980) pelo puro prazer de se tornar parceiro póstumo do compositor de O mundo é um moinho (1976), música que cantara em programa de TV, em 1986, quando ainda havia muro separando o rock da MPB. Única música do disco que reviveu a parceria de Cazuza com Roberto Frejat, coautor de sucessos como Blues da piedade (1988) e Ideologia (1988), Como já dizia Djavan escancarou com certo lirismo uma estória romântica de Cazuza que poderia ter feito parte do repertório do segundo álbum solo do artista, Só se for a dois (1987), calcado em romantismo pop. Uma das boas músicas do repertório de Burguesia, a canção folk Perto do fogo acendeu a parceria de Cazuza com Rita Lee, companheira ideológica do artista e representante icônica da geração do rock brasileiro dos anos 1970. Não por acaso, Cazuza escolheu o blues-rock Cartão postal (Rita Lee e Paulo Coelho, 1975) para o lote de incursões feitas por repertórios alheios ao longo das 20 faixas do álbum Burguesia. Fora do trilho autoral, Cazuza também deu voz à apaixonada balada paralâmica Quase um segundo (Herbert Vianna, 1988) e – já publicamente fora do armário – reviveu o samba-canção Preconceito (Antonio Maria e Fernando Lobo, 1953), em clima de tango, antes de cantar o amor sensual de Esse cara (Caetano Veloso, 1972). Pela inevitável vulnerabilidade vocal do cantor naquele difícil ano de 1989, muitas excelentes músicas lançadas no álbum Burguesia ganhariam mais brilho em registros posteriores de outros intérpretes. Mulher sem razão era inspirada sobra da safra composta por Cazuza em 1986 com Bebel Gilberto e Dé Palmeira, mas a canção ficou esquecida em Burguesia até ser lembrada por Adriana Calcanhotto no álbum Maré (2008), sendo regravada por Ney Matogrosso já no ano seguinte ao registro da cantora. Já Cobaias de Deus – a música mais impactante da safra autoral do álbum Burguesia por relatar na letra as sensações delirantes de um Cazuza vulnerável na cama de hospital “maquiavélico” – surgiu em delicada aura folk que contrastou com a força dos versos, musicados por grande inspiração por Angela Ro Ro. Foi preciso esperar quatro anos para que a parceira de Cazuza na composição evidenciasse toda a força de Cobaias de Deus em gravação ao vivo de álbum lançado por Ro Ro em 1993. Filho único (João Rebouças e Cazuza), Manhatã (Leoni e Cazuza) – relato irônico das impressões do artista turista em Manhattan, epicentro de Nova York (EUA) – e a melancólica balada Bruma (Arnaldo Brandão e Cazuza) também integraram o repertório de Burguesia, álbum encerrado lindamente com a canção Quando eu estiver cantando, parceria de Cazuza com o pianista e compositor João Rebouças, produtor musical do disco. “…O meu canto é o que me mantém vivo”, sentenciou Cazuza nesta canção supostamente feita para Maria Bethânia. Há 30 anos fora de cena, Cazuza se manteve vivo como um dos artistas mais emblemáticos da história da música do Brasil pela urgência de poesia virulenta que pulsou nos sulcos deste heroico Burguesia, álbum vital, cheio de encantos que, se tivesse sido lançado como LP simples, com 12 das 20 faixas, teria resultado mais coeso e, sem piedade, talvez fosse percebido como o grande disco que poderia ter sido.