Setor emprega mais de um milhão de franceses e produz dividendos sete vezes maiores que a indústria automobilística do país. Homem usando máscara de proteção organiza livros na livraria La Sorbonne, na França Eric Gaillard/Reuters 6 mil cinemas, 3 mil livrarias, 2500 casas de show, 1200 museus e mais de mil 1000 teatros fechados. 2540 shows cancelados em festivais de verão do Hemisfério Norte, que tentam sobreviver a um prejuízo da ordem de 3 milhões de euros. A cultura na França acorda lentamente e com ressaca do torpor causado pela crise sanitária, tentando recuperar um setor que emprega mais de um milhão de franceses, e que produz dividendos sete vezes maiores que a indústria automobilística do país. Rumores de que o novo coronavírus trazia ameaças mais sérias do que "uma gripezinha" começaram a correr a França no dia 4 de março de 2020, quando as portas do museu mais visitado do mundo – o Louvre – foram fechadas para o público em plena temporada. Os franceses e parisienses começaram então a perceber que algo mais série se passava do ponto de vista sanitário. Essa percepção demorou para se consolidar. No dia 7 de março, o presidente da França, Emmanuel Macron, esteve na plateia de um espetáculo no tradicional teatro Bouffes du Nord, no décimo distrito de Paris. Mas o "coup de grâce", ou o golpe final para o setor cultural francês, veio no 13 de março, quando o primeiro-ministro, já em alerta pelo alcance da pandemia, mandava fechar à meia-noite daquele dia todas as estruturas de acolhimento do público que não fossem “essenciais para o país”. Além de casas de shows, ópera, teatro e dança, o que na França é conhecido como "spectacle vivant", também os museus, grande patrimônio francês, estão tendo que remodelar seus sistemas econômicos para a reabertura do país, que engata nova fase no dia 22 de junho com a abertura das salas de cinema. A questão se coloca de maneira dramática, uma vez que o atual modelo econômico dos grandes museus depende de uma frequência massiva do público para sobreviver. O centro de arte contemporânea de Paris – o Georges Pompidou – contabiliza um prejuízo atual de 2 milhões de euros e o Grand Palais perde cerca de 50 mil de euros por dia sem os visitantes. Qual seria a nova fórmula para sobreviver em tempos de pós-pandemia? Abrir e fechar mais tarde as salas, para diminuir o amontoamento do público? Mudar a relação com a apreciação da obra de arte, em espaços mais desfalcados de gente? Todas essas questões são passadas a limpo neste mês de junho na França. A ministra francesa da Cultura, Aurélie Filippetti, questiona se não seria a hora de mudar o modelo econômico que hoje sustenta os grandes museus. "Talvez seja o momento de investir mais nas coleções permanentes e menos nas grandes exposições temporárias temáticas, que chamamos de exposição-evento", argumentou Flippetti à televisão francesa. Foi anunciado em 6 de maio um plano de recuperação para o setor cultural na França, gravemente afetado pela pandemia e pela quarentena. Muito criticado pelo setor, que denunciava coletivamente um "esquecimento intencional da cultura", Macron anunciou na ocasião que manteria o sistema de remunerações dos artistas, produtores e técnicos das artes até agosto de 2021 e a criação de um "fundo de indenização" para todos os profissionais do audiovisual francês cujas produções fossem canceladas devido à crise do coronavírus. 'Crianças mimadas' "Para ser bem sincero, acredito que na França somos as crianças mimadas da cultura", diz o roteirista Jean-Marie Chavent, que assina séries de sucesso para a televisão francesa. "Quero dizer com isso que existe uma espécie de reclamação de que apenas 1% do orçamento francês seja destinado à cultura. Acredito que, no mundo, somos um dos países onde o orçamento destinado ao setor é um dos mais significativos, e isso nunca foi questionado”, argumenta. "Depois, há o estatuto dos 'intermitentes do espetáculo', pelo qual somos invejados por artistas do mundo inteiro", afirma Chavent. "Efetivamente, podemos dizer que existe um modelo a ser reinventado, mas, uma vez mais, minha percepção é de que somos privilegiados, seja no cinema, na televisão, ou nas chamadas 'exceções culturais' [mecanismo que obriga os canais de televisão a investir uma boa parte de seus lucros no cinema francês]", diz o roteirista. "Apesar de tudo, fazemos parte de um sistema bastante privilegiado e protegido. Podemos sempre reclamar a curto prazo, dizendo que [os efeitos da crise sanitária na cultura francesa] foram mal administrados, mas eu não acredito nisso", afirma. Chavent conta que as equipes de televisão já voltaram a gravar novos episódios na França, mas com algumas medidas de precaução. "Não existe nenhuma indicação sobre a idade [dos atores e da equipe]. No que diz respeito aos roteiristas, o governo francês administrou bem a crise, algumas subvenções do Estado foram criadas, e também a categoria contou com isenção parcial de impostos. Ajudas de urgência foram disponibilizadas também pelo CNC [o Centro Nacional de Cinema da França]", relata. "Essas ajudas foram relativamente eficazes", avalia Chavent. O sistema da intermitência a que se refere o roteirista Jean-Marie Chavent é uma especificidade francesa que garante a sobrevivência de artistas e técnicos do espetáculo durante o período em que não estão em atividade na França. Para se ter direito a esta indenização especial e dedicada à classe artística, cada profissional deve cumprir e comprovar 507 horas de trabalho por ano, sem as quais não se consegue o subsídio. 'A incerteza é a materialização da cultura' Radicado na Europa há mais de 15 anos, o performer e artista brasileiro Wagner Schwartz hoje mora na França, onde já se apresentou em algumas das instituições culturais mais prestigiosas do país. O autor de "La Bête", obra que chocou a extrema direita brasileira e virou alvo de sites de fake news e milhares de ameaças anônimas, tem uma visão nada romântica do momento. "Artistas intermitentes estão furiosos, porque muitos pensam a cultura na França e não apenas em salvar a própria vida durante uma pandemia. Macron pensa em salvar a vida dos intermitentes durante a pandemia. Ele não se preocupa com vida dos artistas, com a cultura na França. O que, olhando de fora, não parece coerente, visto o grande número de festivais, teatros, centros de formação que este país construiu", afirma Schwartz. "Pensar a cultura local – que também é internacional – exigiria um investimento maior, porque ela não se reduz à arte institucionalizada, mas também ao que está ao redor dela: as produções intermitentes, que entram e saem das instituições. Garantir a sobrevida de uma estrutura, de uma tradição não significa problematizar o que as faz existir ainda hoje", garante. "Muitos artistas vivem a incerteza de um próximo trabalho e este estado de precariedade é também a França. Ele não pode ser ignorado. A incerteza faz parte do contexto de muitos trabalhos, peças, filmes apresentados na França. A incerteza é a materialização da cultura", diz o performer. "O investimento maior, do qual falava logo acima, não tem relação alguma com orçamento, mas com um compromisso intelectual, político: investir no assunto em detrimento do funcionamento dos estabelecimentos. Investir no assunto de hoje, na incerteza, dá trabalho, muito mais trabalho do que se possa imaginar. Contudo, é daí que surge um verdadeiro compromisso com a cultura local/internacional. Já dizia Woody Allen, 'a tradição é uma ilusão da permanência'", conclui o artista. O drama dos DJs Outra categoria cultural que sofreu bastante com a pandemia foram os DJs como o brasileiro Thy San, que assina algumas das noitadas mais disputadas de Paris, e que está há três meses de molho. "Acho que a nossa profissão é uma das que mais vai sofrer, porque será certamente o ultimo setor a retornar", avalia San. "Precisamos em nossa profissão obrigatoriamente do presencial. Geralmente as festas que faço aqui são bem cheias, entre 300 e 1.000 pessoas. Alguns lugares já começam a abrir esta semana, mas com música mais lounge, e não para dançar", conta o DJ. "Não sei quanto tempo isso vai durar, porque a verdade é que todo mundo começa a dançar num determinado momento. É impossível controlar isso", confessa o profissional. "Nos lugares que reabrem esta semana, propuseram que as pessoas permaneçam sentadas, e as casas poderão atuar apenas com 30% de sua capacidade de público. Além disso, as pessoas não podem beber de pé, apenas sentadas. Não sei muito bem como vai ser isso", diz. "Fomos atingidos muito fortemente pelos efeitos da crise sanitária. Eu tinha acabado de fazer diversas festas do Carnaval brasileiro, cheguei em Paris com várias datas pré-marcadas que foram canceladas. Não teve como recuperar isso, do dia para a noite tudo se perdeu", afirma. "Eu sou inscrito no estatuto de pequeno empresário ('autoentrepreneur') na França (que autoriza a receber cachês e emitir notas fiscais). Tivemos ajuda do governo para sobreviver nestes três meses, uma ajuda 'excepcional' para quem tem os documentos em dia. Eles estudam agora continuar essa ajuda até setembro, quando nossa atividade deve recomeçar de fato", afirma Thy San. "Acho bem legal a ajuda do governo francês a profissionais como DJs, sobretudo em comparação com o Brasil. Meus amigos no Brasil não tem acesso a essa ajuda, por exemplo. No começo deu um desespero, porque não houve uma resposta específica sobre a nossa categoria, mas agora está tudo bem", conclui o DJ.