Durante nove anos, entre 2007 e 2016, os argentinos conviveram com a falta de credibilidade nos dados oficiais de inflação e de pobreza no país. Antes sem dados confiáveis, inflação aumentou vertiginosamente no governo Macri após reajustes, acompanhando a alta do dólar Getty Images via BBC Um "pesadelo" para a credibilidade do país. É assim que autoridades do setor de estatísticas da Argentina se lembram do período em que o governo de Cristina Kirchner maquiou números para cumprir sua obstinação em manter a inflação anual em até 10% ao ano. "Não adianta querer ocultar ou manipular nada, incluindo números. Todo mundo acaba sabendo a verdade. E foi o que aconteceu. Foi um péssimo período para o país", recorda um ex-diretor do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec, equivalente ao IBGE). Durante nove anos, entre 2007 e 2016, os argentinos conviveram com a falta de credibilidade nos dados oficiais de inflação e de pobreza no país. O apagão dos índices básicos das áreas econômica e social tinha começado em janeiro de 2007, quando técnicos do Indec renunciaram denunciando "intervenção política" na formulação dos números. "Nós mandávamos relatórios semanais para a Presidência com o índice de inflação, antes do fechamento mensal do dado. Em janeiro de 2007, a inflação caminhava para ser mais alta que nos meses anteriores. Foi aí que começaram a nos pressionar com telefonemas insistentes para mudarmos o número oficial", recorda um ex-diretor, que falou sob a condição do anonimato. Ele diz que desde então "desistiu" de trabalhar em organismos públicos. Poucos dias antes da divulgação do dado oficial, governantes ligaram para os diretores do instituto e avisaram o índice de janeiro de 2007 que queriam que fosse informado aos argentinos. "Primeiro, disseram que a inflação deveria ser 0,9%. E depois acabaram divulgando 1,1%. Não era muito diferente da que tínhamos calculado, de 1,5%. Mas ali já começava uma ginástica para que a inflação não terminasse o ano em 10%", lembra. O economista Orlando Ferreres, da consultoria OJF&Associados, de Buenos Aires, disse que a preocupação do governo com os 10% era justificada porque a Argentina tinha que pagar credores da dívida do país que tinham investido em títulos públicos atrelados aos índices econômicos. "Os credores queriam que fosse respeitada a inflação real, não uma maquiada para baixo", disse Ferreres. Segundo economistas, com os títulos públicos atrelados ao crescimento econômico e à inflação, os credores ganhariam mais com os dados reais e não com os maquiados. 'Sem bússola' Ex-presidente Cristina Kirchner hoje é vice do atual mandatário argentino, Alberto Fernández, seu ex-chefe de gabinete Getty Images via BBC Naquele ano de 2007, a inflação terminou em 8,7%, segundo o Indec. A mais baixa em quatro anos, de acordo com o instituto. Mas começaram a surgir os levantamentos alternativos. Ex-técnicos do instituto divulgaram em janeiro de 2008 que os preços teriam subido, em 2007, entre 22,3% e 26,2% — cerca do triplo do que foi divulgado oficialmente. Começava ali uma novela desgastante para a credibilidade nos índices argentinos, que incluiu disputas internas e internacionais. Multas e ameaças de prisões, além de um leque de índices paralelos feitos por consultorias econômicas, universidades e pelos ex-técnicos do Indec, que protestavam na porta do organismo. A percepção, disse na época um executivo de uma empresa brasileira em seu escritório no centro de Buenos Aires, é que o país "não tem bússola". "Levei um susto quando me ligaram aos gritos para dizer que teríamos problemas se aumentássemos nossos preços, que estão ligados ao mercado internacional", disse, na época, sob a condição do anonimato. 'Maquiagem grosseira' Numa entrevista à rádio Continental, de Buenos Aires, o ex-ministro da Economia do governo do ex-presidente Néstor Kirchner, Roberto Lavagna, que liderou a pasta entre 2002 e 2005, disse que a maquiagem de dados da inflação era evidente. E comparou a falsificação dos índices aos tempos da ditadura militar no país. Kirchner, que morreu em 2010, governou a Argentina entre 2003 e 2007 e passou a faixa presidencial para a esposa, a ex-presidente Cristina, que é vice do atual presidente. Alberto Fernández. “O que o senhor achou da inflação oficial de 1,1% de janeiro (de 2007)?”, perguntou a radialista Magdalena Ruiz Guiñazu. Lavagna respondeu: “É uma maquiagem grosseira do índice. Quando as estatísticas de custo de vida perdem credibilidade, as de pobreza, de indigência e de distribuição de renda também perdem valor. O país fica novamente sem estatísticas que são básicas. Isso ocorreu durante o governo militar. É como se um médico estivesse falsificando os problemas de seu paciente. A maquiagem de dados é grave, afeta as instituições e a inflação em si”, disse, em fevereiro de 2007, logo depois da divulgação da inflação oficial de janeiro. O ex-ministro disse ainda que a Argentina iria demorar para recuperar a credibilidade nos dados do país. O que de fato acabou ocorrendo. Em maio de 2013, quando ainda faltavam cerca de três anos para que as estatísticas do Indec recuperassem credibilidade, o jornal El Cronista, de Buenos Aires, publicou um artigo intitulado “Inflación: las patas de la mentira” (“Inflação: as pernas da mentira”). No texto, afirmava-se que a “intervenção” do Indec foi um “ponto de inflexão na guerra dos preços” na Argentina. Em dez anos, informou-se, a inflação oficial foi de 95,5% e a dos levantamentos do setor privado, de 170%. Durante muito tempo, ficou complicado definir o índice de aumento dos salários dos trabalhadores, com sindicatos de diferentes categorias defendendo o reajuste seguindo dados paralelos, e não o oficial. Algumas vezes, era tirada uma média entre um e outro para se chegar a um patamar que agradasse empregadores e empregados. Como a questão envolvia ramificações internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) defendeu que o país devolvesse a credibilidade às suas estatísticas, informou a imprensa local na ocasião. A falsificação dos dados, denunciada em 2007, continuou até 2016, quando o Indec refez sua metodologia seguindo normas internacionais. A maquiagem denunciada gerou processos na Justiça argentina que a pedido, por exemplo, da Associação pelos Direitos Civis (ADC), determinou que o Indec explicasse como confeccionava seus indicadores oficiais. A situação provocou dúvidas sobre o total de pobreza no país – que também era alvo de dados paralelos. A disputa levou o então secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, acusado de liderar, como informou a imprensa local, a ação contra o Indec, a determinar que as consultorias econômicas que divulgavam índices paralelos pagassem multas milionárias. "Eu estava de férias em Punta del Este, no Uruguai, quando Moreno me ligou para reprovar a inflação que tínhamos divulgado. Expliquei que não estava na Argentina e ele me disse para telefonar aos meus assessores em Buenos Aires. Era complicado", disse o economista Ferreres, que esteve entre os multados. A multa, contam agora consultores, também virou caso na Justiça e acabou arquivada. O índice das consultorias econômicas tinha passado a ser chamado de "índice Congresso" porque parlamentares opositores podiam divulgá-lo sem os mesmos riscos que correriam os economistas, lembram. Tempos depois, a pedido de opositores, Moreno foi acusado pela Justiça de "fraudar" dados básicos da economia, segundo informou a imprensa local. A Justiça entendeu que ele não tinha cometido delito e que o governo teria direito a implementar sua própria metodologia. "A decisão confirma que o governo de Cristina Kirchner saiu com 6% de pobres. Chegaram a dizer que tínhamos deixado 30% de pobres, mas não foi verdade e acabam de nos dar razão", afirmou Moreno, após a decisão judicial. Naquele ano do fim do mandato kirchnerista, 2015, o índice de pobreza foi de cerca de 28%, segundo outro levantamento paralelo, o do Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica (UCA). Definido há quase quatro anos como "confiável", pela situação e pela oposição, o Indec informou, antes da pandemia do novo coronavírus, que a inflação de 2019 foi de 53,8%, a pobreza 35,5% e que o PIB encolheu 2,2%. Nos quatro primeiros meses deste ano, a inflação oficial foi de 9,4%. Os dados de pobreza estão em fase de coleta. Em março de 2020, a imprensa local informou que credores que investiram nos títulos públicos argentinos voltaram a apelar à Justiça contra aquela maquiagem dos dados oficiais. A alegação foi a suposta perda de dinheiro com a "manipulação dos dados do crescimento", o que teria afetado o valor dos papéis ligados ao PIB argentino.