Capa do álbum 'Cida Moreyra canta Chico Buarque', de Cida Moreira Herton Roitman a partir de pintura de Flan Floris ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Cida Moreyra canta Chico Buarque, Cida Moreira, 1993 ♪ Seguidores atentos da trajetória profissional de Maria Aparecida Guimarães Campiolo – batizada Cida Moreira no mundo das artes – certamente detectaram coerência na decisão da cantora e atriz paulista de gravar disco inteiramente dedicado ao cancioneiro de Chico Buarque. Um dos protagonistas do teatro da canção, o compositor carioca já estava presente no roteiro do primeiro show da intérprete, Summertime – Um show pra inglês ver (1979 / 1980), gravado ao vivo para ser perpetuado no primeiro álbum da cantora, Summertime (1981). Nesse trabalho seminal, que moldou a personalidade artística de Cida Moreira no tênue limiar entre música e teatro, a intérprete já dava a voz histriônica a Geni e o Zepelim (1977 / 1978), canção do espetáculo A ópera do malandro (1978) em que Chico escreveu tratado sobre a hipocrisia humana. Por isso mesmo, Geni e o Zepelim reapareceu simbolicamente no álbum Cyda Moreira canta Chico Buarque em registro ao vivo captado em setembro de 1991 em apresentação da cantora na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Com todas as nuances teatrais refletidas no canto da artista, Geni e o Zepelim voltou para lembrar que Cida Moreira é e sempre foi a maior representante brasileira das saloon singers, rótulo dado às cantoras de cabaré, vozes desbocadas na luta contra o poder opressor, travada através da música. Nessa luta, as armas de Cida sempre foram as escolhas inteligentes dos repertórios a cujo serviço pôs a voz operística, treinada desde a infância juntamente com os estudos de piano iniciados na interiorana cidade de Paraguaçu Paulista (SP), onde Cida Moreira cantou pela primeira vez em 1957, aos seis anos, interpretando o samba-canção Serra da boa esperança (Lamartine Babo, 1937) em emissora de rádio local. Nascida em 12 de novembro de 1951, a artista tinha 41 anos quando lançou em janeiro de 1993, pela gravadora Kuarup, o álbum Cida Moreyra canta Chico Buarque, quinto título de discografia que já havia rendido LPs como Abolerado blues (1983), um dos marcos da associação da artista com a lira paulistana do movimento vanguardista que emergiu em São Paulo no alvorecer da década de 1980. O songbook de Chico Buarque foi o primeiro disco de Cida editado em CD, formato então já dominante no mercado fonográfico brasileiro de 1993. Nessa época, a voz da cantora estava no auge da forma, com todos os agudos do timbre operístico evidenciado nas interpretações de canções como Todo o sentimento (Cristovão Bastos e Chico Buarque, 1987) e Choro bandido (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985). Na época do CD com músicas de Chico, gravado no estúdio paulistano A voz do Brasil entre setembro e outubro de 1992, Cida grafava o sobrenome Moreira com y – como pode ser visto na arte da capa do álbum, criada por Herton Roitman a partir de quadro La famille van Bergheim, obra do pintor belga Frans Floris (1517 – 1570). Sendo Moreyra ou Moreira, Cida sempre foi intérprete de grandeza explicitada neste tributo a Chico Buarque em que alinhou, com inteligente costura teatral, 19 músicas do compositor selecionadas com ênfase em temas criados pelo autor para trilha sonoras de peças, filmes e balés. As vinhetas que abriram e fecharam o álbum – Morte e vida Severina – Abertura (1965) e Valsinha (Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1970), respectivamente – sublinharam a teatralidade da narrativa construída pela artista no disco produzido pela própria Cida Moreira com Mario de Aratanha. Aratanha é o fundador da Kuarup, gravadora que lançaria mais dois álbuns da cantora, Na trilha do cinema (1997) e Uma canção pelo ar… (2003), e que se prepara para pôr no mercado neste ano de 2020 o álbum Um copo de veneno (cujo lançamento, antes previsto para março por outro selo, chegara a ser cancelado por questões com uma distribuidora, sendo viabilizado somente quando o disco foi oferecido a Kuarup). Dona do dom do canto teatral, Cida Moreira se portou como legítima dona das músicas de Chico Buarque neste disco gravado sob direção musical do pianista e clarinetista Gil Reyes. Bastaria o perfeito registro de Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque, 1983), feito somente com o canto de Cida e o piano de Reyes, para atestar o domínio da atriz cantora na cena em que abordou o cancioneiro já em si teatral de Chico. Contudo, o álbum Cida Moreyra canta Chico Buarque desfiou rosário de muitas outras pérolas lapidadas entre o lirismo melancólico de Suburbano coração (1984) e o cinismo histriônico de A voz do dono e o dono da voz (1981). Exemplo da maestria de Cida na abordagem da obra de Chico, o registro de Morro dois irmãos (1989) tratou o samba com o rigor de peça erudita em sintonia com os silêncios respeitosos exigidos pela composição. Recorrente no álbum, o samba também ditou o ritmo de O malandro (Kurt Weill e Bertolt Brecht em versão em português de Chico Buarque, 1977 / 1978) – vinheta em que Cida evocou com sagacidade a cadência e o clima do álbum anterior de 1987 em que interpretou o repertório musical do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956) – e de Estação derradeira (1987). Ao dar voz a esse samba, Cida subiu pesarosa o morro com a percussão sucinta de Sérgio Chica para denunciar a loucura e o desvario de cidadãos e fogueiras que ardiam no solo sangrento do Rio de Janeiro (RJ). Nessa cidade de munição pesada cravada no peito de São Sebastião e do povo carioca, Angélica (Miltinho e Chico Buarque, 1977) – réquiem para Zuzu Angel (1921 – 1976), mãe enlutada pelo assassinato do filho militante Stuart Angel (1946 – 1971) – foi louvada por Cida Moreira no devido tom fúnebre, em lamento potencializado pelo sopro do clarinete de Gil Reyes. Se a cadência da vinheta com o samba Bom tempo (1968) lembrou a origem carioca do compositor, o acordeom tocado por Toninho Ferragutti transportou Soneto (1972) para qualquer rua de Paris onde Edith Piaf (1915 – 1963) ia ao fundo do coração para soltar a voz com sentimento similar ao posto por Cida Moreira em canções como Valsa brasileira (Edu Lobo e Chico Buarque, 1988). Com a propriedade de quem transitou por grupos de teatro antes de seguir carreira na música, Cida Moreira evidenciou no disco a dramaticidade sensual de Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973), o iminente esgotamento de Gota d'água (1975) e a determinação feminina de Palavra de mulher (1985) entre vinhetas como a de Mar e lua (1980). No resumo da ópera dessa cantora astuta que captou a malandragem de cada música a que deu voz, Cida Moreira cantou Chico Buarque neste álbum de 1993 com inteligência e sensibilidade destacadas pelo próprio compositor em depoimento para o jornalista Thiago Sogayar Bechara incluir na biografia da artista, Cida Moreira – A dona das canções (2013). “É um disco que escuto ainda hoje com muito gosto”, confidenciou Chico Buarque a Bechara, celebrando o canto perspicaz de Maria Aparecida Guimarães Campiolo, a dama Cida Moreira, dona do dom e de voz teatral que continua em cena, já sem os agudos de outrora, mas com a maturação penetrante do tempo.