Capa do álbum 'Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora', de Itamar Assumpção Arte de Paulo Caruso ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora, Itamar Assumpção, 1996 ♪ Com discografia de traços vanguardistas, geralmente bancada às próprias custas, como enfatizou no título do segundo dos 12 álbuns que constituíram obra fonográfica referencial na música brasileira, o cantor, compositor e músico paulista Francisco José Itamar de Assumpção (13 de setembro de 1949 – 13 de junho de 2003) se pautou por assimetrias, dissonâncias e falas ritmadas que friccionaram diversos gêneros musicais, irmanados sob a ótica experimental do artista, autor de música feita fora do molde do mercado. Pelo foco inovador da criação e pela postura arisca do criador, Itamar Assumpção logo se viu marginalizado pela indústria do disco e sempre foi pouco ouvido, inclusive dentro das fronteiras de São Paulo (SP), cidade que gerou no alvorecer da década de 1980 o movimento musical conhecido como Vanguarda Paulista, do qual o artista foi um dos principais expoentes. Envolvida em aura de maldição, alimentada tanto pela mídia quanto pelo temperamento arisco do artista, a obra de Itamar Assumpção foi alicerçada sob trilho autoral, do qual o cantor somente se desviou para celebrar o cancioneiro do compositor mineiro Ataulfo Alves de Souza (2 de maio de 1909 – 20 de abril de 1969) no oitavo álbum da carreira, gravado entre abril e setembro de 1995 com produção musical orquestrada por Paulo Lepetit, sob direção artística e musical do próprio Itamar. Mixado em outubro de 1995, mês em que foi apresentado à imprensa com a notícia de que o CD estaria nas lojas em 20 de novembro daquele ano, em lançamento alinhado com os eventos que lembrariam os 300 anos do assassinato de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695), o álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora foi efetivamente posto no mercado no início de 1996. Editado pela Paradoxx Music, gravadora aberta em São Paulo em 1993 que seria desativada em 2006, o disco reapresentou a obra de Ataulfo – compositor em evidência dos anos 1930 aos 1960, tendo ficado especialmente associado ao universo do samba – sob o prisma vanguardista de Itamar. Recorrente em tributos fonográficos do gênero, a ortodoxia foi excluída desse álbum emblemático pelo fato de ter propiciado o encontro de dois artistas negros distanciados musical, geracional e geograficamente – mas ambos alicerçados pela matriz africana que embasa os sons do Brasil – e por ter promovido o elo da vanguarda paulistana com o samba carioca. Embora de origem mineira, Ataulfo Alves migrou para o Rio de Janeiro (RJ) com 18 anos e foi nessa cidade, então com o justo status de capital cultural do Brasil, que o artista fez nome e história na música popular. Com capa que expôs Ataulfo e Itamar nos traços caricaturais de Paulo Caruso, o álbum resultou longo, com 20 faixas que totalizaram quase 73 minutos, mas jamais soou cansativo ou linear porque Itamar Assumpção levou o samba de Ataulfo Alves para a atmosfera inovadora da própria obra em movimento progressista feito com o toque da fiel banda Isca de Polícia, integrada por virtuoses como o baterista Gigante Brasil (1952 – 2008) e o guitarrista Luiz Chagas. Temperos do cancioneiro de Ataulfo Alves, o lirismo, o melodrama, a melancolia e a nostalgia foram filtrados pela estética do artista paulistano. Foi como se Ataulfo Alves fosse abordado de supetão pela personagem-síntese da obra de Itamar, Benedito João dos Santos Silva Beleléu, o Nego Dito, apresentado pelo artista no seminal álbum Beleléu, Leléu, Eu (1980), uma das pedras fundamentais da Vanguarda Paulista. Sem negar o samba, mas seguindo outras cadências igualmente bonitas, Itamar Assumpção releu Ataufo com falas cantadas – uma das mais fortes marcas rítmicas da obra do artista – e com mistura sincrética de ritmos negros como funk, soul e blues. Essa fusão incorporou o samba sem mostrá-lo como o protagonista da cena. Sim, cena. De caráter cinematográfico, a imagética obra de Itamar teve evidenciado esse traço no álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora. A sequência das 20 faixas foi estruturada como roteiro, aberto com a voz do cantor Noite Ilustrada (1928 – 2003). Mineiro como Ataulfo, Noite Ilustrada introduziu a composição Meus tempos de criança (1956) na abertura do álbum e, após 30 segundos, houve interrupção, como se o ouvinte tivesse mudado de estação para sintonizar o registro heterodoxo da música por Itamar, feito com a banda Orquídeas do Brasil. Na sequência do disco, Itamar recebeu Jards Macalé, violonista da abordagem do maior sucesso da obra de Ataulfo, Ai, que saudades da Amélia (1942), parceria do compositor com Mário Lago (1911 – 2002). O diálogo do canto de Itamar com o violão de Macalé redesenhou o samba de contorno machista, inaceitável no Brasil de 2020. Quatro faixas depois, Macalé reapareceu no disco como cantor, fazendo duo com Itamar em Laranja madura (1966), samba embebido em atmosfera bluesy. Solado pela cantora Miriam Maria, o samba Bom crioulo (1959) evidenciou a maestria de Itamar como arranjador – no caso, criando trama percussiva requintada e evocativa dos batuques de umbigada feitos na cidade natal do artista, Tietê (SP), por descendentes de escravos vindos de Angola e do Congo para o Brasil. Já o samba Mulata assanhada (1956) ganhou o toque erudito dos violões do Duofel, cadência inusitada e as vozes (recorrentes ao longo do álbum) de Tata Fernandes e Vange Milliet, cantoras que personificaram no disco as pastoras do grupo de Ataulfo. Na introdução de Mulata assanhada, Itamar citou o samba anterior, O requebrado da mulata (1968), grafado no encarte com o título alternativo Requebro da mulata. A propósito, as citações se repetiram ao longo do disco, interligando faixas como o melodramático samba-canção Errei sim (1950) – cantado por Virgínia Rosa sob a ótica original feminina, de gênero invertido por Itamar quando a voz do cantor entrou na segunda metade da faixa – com o samba anterior Errei erramos (Ataulfo Alves e Arthur Vargas Jr., 1938). Nessa área melodramática, Pois é (1955) foi conectado com Vai, mas vai mesmo (1958) pelo mesmo recurso de citações. Entre as exposições da verve impiedosa de O homem e o cão (Ataulfo Alves e Arthur Vargas Jr., 1967) – título mais obscuro do cancioneiro de Ataulfo – e da resignação afetiva do popular samba Atire a primeira pedra (Ataulfo Alves e Mário Lago, 1944), Itamar evidenciou a mágoa machista de Sei que é covardia (Ataulfo Alves e Claudionor Cruz, 1957) e fez O bonde de São Januário (Ataulfo Alves e Wilson Baptista, 1940) exaltar o trabalho no trilho paulistano do álbum. Em Nem que chova canivete (1967), os toques incisivos das guitarras de Luiz Chagas e Luiz Waack cortaram a cadência do samba para criar atmosfera roqueira. No mesmo clima, Na cadência do samba (Ataulfo Alves e Paulo Gesta, 1962) caiu em suingue atípico do gênero em mais uma amostra da postura altiva de Itamar Assumpção ao cantar (e rearranjar) Ataulfo Alves sem deixar de louvar, por vias tortas, esse samba – assunto do compositor mineiro nos versos de Jubileu (1959), de Gente bem também samba (1967) e de Leva meu samba (1941). Bafejada pelo sopro do trombone de Itacyr Bocato, a faixa Gente bem também samba deu toque antirracista através da repetição do verso “No samba não há preconceito de cor”. Já Leva meu samba trouxe leveza quase pop para o tributo heterodoxo de Itamar a Ataulfo. “Tentei fazer um samba / Diferente do que faço / Confesso minha gente / Saí fora do compasso”, avaliou Itamar, maroto, ao encerrar o disco com o suingue aliciante de Vassalo do samba (1966). Os versos eram de Ataulfo Alves, mas soaram como se fossem testemunho de Itamar Assumpção ao sublinhar com espirituosidade a salutar inventividade com que levou o samba do colega antecessor para o próprio universo musical em álbum para sempre relevante justamente por ter fugido das reverências triviais. Embora saudado com entusiasmo pelos críticos, o álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora manteve Nego Dito nas vias marginais do mercado e, dois anos depois, Itamar voltou para o trilho autoral com o álbum Pretobrás – Porque eu não pensei nisso antes? (1998), derradeiro disco do artista em vida. Três títulos póstumos foram lançados entre 1994 e 2010, expandindo a obra de Itamar Assumpção sem alterar o status deste artista fundamental nos anos 1980 para renovar a música feita no Brasil com obra que, afinal, como provou Zélia Duncan anos depois no álbum Tudo esclarecido – Zélia Duncan canta Itamar Assumpção (2012), nunca foi nenhum bicho de sete cabeças.