Projetado a partir da década de 1990, o compositor e violonista carioca está em cena há cinco décadas com obra requintada, degustada somente em nichos. ♪ MEMÓRIA – Era improvável que, no alvorecer dos anos 1990, ainda aparecesse um grande nome da MPB, gênero então já corroído pelas traças do mercado, mas ainda e sempre pulsante nos meandros solitários da criação. Só que esse grande nome apareceu. Ou reapareceu. Porque Carlos Althier de Souza Lemos Escobar estava longe de ser novato quando, graças ao justo alarde da imprensa musical com o lançamento em 1991 do álbum Simples e absurdo, o público de ouvidos mais abertos às sofisticações da MPB descobriu Guinga e se deslumbrou com o cancioneiro luzidio do compositor e violonista carioca. Guinga, o grande, completa 70 anos nesta quarta-feira, 10 de junho de 2020, como artista genial, ainda (re)conhecido somente por poucos e bons. Guinga é o sucinto nome artístico com o qual Carlos Althier de Souza Lemos Escobar – o tal último grande nome da MPB – foi apresentado para esse público antenado. Apresentar, no caso, nem é o verbo mais adequado porque, em 1991, como dito, Guinga já era quase um veterano, inclusive como dentista, profissão que por anos o possibilitou exercer o dom da música sem precisar correr atrás do mercado. Na época, o artista já contabilizava mais de 20 anos de trajetória musical profissional iniciada em 1970 como acompanhante da cantora Alaíde Costa ao violão, instrumento que aprendera a tocar, de forma clássica, na adolescência. Guinga também é reverenciado pelo notável toque do violão, instrumento que começou a estudar com 11 anos Mandred Pollert / Divulgação Se começou a estudar violão aos 11 anos, Guinga começou a compor aos 13 anos. Quatro anos mais tarde, em 1967, classificou uma música, Sou só solidão, composta com letra de Paulo Faya, na segunda edição do Festival Internacional da Canção, o FIC que projetou Milton Nascimento – dado biográfico que prova ser Guinga um nome da MPB que poderia ter despontado juntamente com a geração de compositores revelados pelos festivais, plataformas que difundiram para o Brasil as obras então emergentes de Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Gonzaguinha (1945 – 1991), Milton Nascimento e Paulo César Pinheiro, entre outros grandes nomes. Parece improvável sob a perspectiva do tempo, mas seria possível. Tanto que Paulo César Pinheiro, sensação de festival de 1968, se tornou parceiro de Guinga no início dos anos 1970 e a parceria veio a público a partir de 1974, ano em que a cantora Clara Nunes (1942 – 1983) gravou Punhal no álbum Alvorecer (1974) e que o grupo MPB4 gravou logo duas músicas, Conversa com o coração e Maldição de Ravel, no álbum Palhaços & reis (1974). Só que nenhuma música de Guinga chegou ao sucesso naquela época. Nem em anos posteriores. A consagração veio somente na década de 1990, com dois álbuns em forma de songbook com elenco estelar, o já mencionado Simples e absurdo (1991) e Delírio carioca (1993), ambos voltados para a surrealista parceria aberta por Guinga em 1988 com Aldir Blanc (1946 – 2020), tão bamba nas letras quanto o antecessor Paulo César Pinheiro. Em 1996, ao lançar álbum dedicado à parceria de Guinga e Aldir, a cantora Leila Pinheiro conseguiu com que a canção-título Catavento e girassol se tornasse conhecida em trilha de sucesso nunca mais seguida por outra composição de Guinga. E nisso, o insucesso posterior, não houve surpresa. Guinga tem obra construída sobretudo em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc Manfred Pollet O sucesso de Catavento e girassol, sim, é que foi o feito extraordinário porque o cancioneiro de Guinga soa extremamente rebuscado, feito fora dos moldes da canção mais melodiosa de estrutura linear. É uma música que caminha para a frente e, ao mesmo tempo, jamais tira o olho do passado de glória da música brasileira e do Rio de Janeiro (RJ), cidade que o artista, a partir de hoje setentão, veio ao mundo em 10 de junho de 1950. O título do álbum Casa de Villa (2007) sintetizou o espírito dessa obra ao misturar evocações ao compositor conterrâneo Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) e ao subúrbio carioca, ambos tão inspiradores para o artista. Ao longo dos 50 anos de carreira, Guinga construiu obra pavimentada com harmonias modernas, mas, paradoxalmente, esse cancioneiro está enraizado nas tradições musicais do Brasil. Se o compositor é um nostálgico moderno, o toque do violonista sempre resultou extraordinário. Tanto que, após os dois álbuns centrados na delirante parceria com Aldir Blanc, Guinga deu prosseguimento à discografia com o álbum Cheio de dedos (1996), de repertório majoritariamente instrumental. Outros discos vieram sempre mantendo o alto nível da obra. E, se o compositor e o violonista sempre falaram mais alto na discografia de Guinga, o cantor também se fez ouvir na mesma frequência nas vezes em que Guinga abriu a voz grave, capaz de alcançar profundas regiões emotivas. Se o Brasil fizesse justiça a Guinga, o artista continuaria gravando discos com regularidade no país sem precisar se valer do interesse de selos europeus para dar continuidade à obra fonográfica. Obra que, mesmo tardiamente revelada, chegou em tempo de mostrar que, sim, Carlos Althier de Souza Lemos Escobar é um grande nome da MPB.