Desafio de escrever uma música por dia, faxina e visitas da gata da vizinha fazem parte da rotina no isolamento. Disco é dedicado a Moraes Moreira e tem parceria com Dennis DJ. Adriana Calcanhotto lança disco 'Só' com músicas feitas na quarentena Divulgação/LeoAversa Enquanto para alguns o desafio da quarentena é lavar a louça do dia anterior na manhã seguinte, Adriana Calcanhotto colocou como meta escrever uma música até a hora do almoço. E, assim nasceu "Só – canções da quarentena", disco que lança nesta sexta-feira (29) e dedica a Moraes Moreira. A única participação é do carioca Dennis DJ. Para quem levou 10 anos para encerrar os três discos sobre mar, com "Margem", em 2019, essa safra de músicas apareceu de forma rápida, urgente e inédita para a cantora que gosta de ficar muito tempo envolvida nas músicas. "Era uma disposição, uma energia para fazer qualquer coisa, para contribuir, para ajudar as pessoas, para aliviar, sei lá… Fazer qualquer coisa de casa", diz Adriana, em entrevista por telefone ao G1. "Sendo que ter essa disposição não garante que vá sair uma canção, e não garante, sobretudo, que vai ser uma canção que eu, por exemplo, gravasse em um disco", pondera. MAURO FERREIRA: Adriana Calcanhotto corre o mundo, com o poder da criação, ao refinar emoções do isolamento Em tempos sem pandemia, Adriana estaria em Portugal dando aulas no curso de composição que ministra na Universidade de Coimbra desde 2017. Ela percebe que esse "surto", como chamou na entrevista, também está relacionado a isso. "Acho que eu fiz o que pediria para os meus alunos”, afirma. E continua: "Tem a ver também com essa coisa de estar em casa, não ter o que fazer, nem outros compromissos, fora as coisas da casa. A criação gosta disso". Composição rápida Adriana não planejava fazer um novo álbum, mas quando escreveu "Corre o Munda", última faixa que fala sobre o rio Mondego que corta Coimbra, percebeu que havia unidade entre as nove canções. "Senti como um fecho mesmo, um click: isso aqui é um grupo, isso aqui é uma safra. Não tinha a menor intenção, mas não posso negar que isso aqui é um álbum", diz. E a produção não parou. Depois de encaminhar o disco para mixagem, Adriana conta que já escreveu outras três canções sobre outros assuntos, e confessa: "Eu sempre tenho um pouquinho essa coisa de 'será que algum dia eu vou conseguir compor outra canção'’? Mas já voltei a compor e dá uma sensação boa… A fonte não secou". Adriana dedica o disco a Moraes Moreira, que morreu em abril depois de um ataque cardíaco e não pôde ser velado como grandes personalidades por conta da pandemia de Covid-19. "O Brasil, a gente não pôde se despedir de um homem que nos deu tanta alegria", diz. "Achei tão triste esse fato que me veio essa coisa de ser a minha maneira de dizer para ele ‘até já’". Novos parceiros Adriana brinca que quando a quarentena acabar pretende fazer uma festa em casa com os parceiros que colaboraram neste trabalho. "Essa festa, se houver, vai ser engraçada porque cada pessoa que chegar aqui eu vou ter que falar 'muito prazer'", brinca. Adriana Calcanhotto Divulgação/Leo Aversa Muitos dos músicos que gravaram faixas não são parceiros recorrentes da carioca, como Zé Manoel e Dennis DJ. A cantora também diz que chamou mais gente do que normalmente por uma questão simples: "A ideia também de chamar um monte de músicos para tocar era justamente porque eu sei que eles estão em casa, sem trabalhar, sem fazer show, sem gravar", conta. Ela diz, no entanto, que a maioria não aceitou receber. O processo de gravar remotamente não foi uma novidade para a cantora. "Magina, se faz isso desde 2000 e pouquinho", diz. "Fomos lidando com o pouco tempo, com o sentimento e a realidade da urgência que não é comum para mim, que gosto de camadas de tempo". Adriana diz que já tem uma relação com o funk desde que gravou "Fico Assim Sem Você" e adora as batidas e os graves. Nesse disco ela se aproximou, de fato, de um representante do gênero em "Bunda Lelê", o produtor carioca Dennis DJ. A música brinca com as palavras que o funk mais usa “Senta”, “vai” e “bunda”, segundo Adriana. "Fiz uma coisa meio brincadeira, por isso achei que ele era o cara ideal, ao mesmo tempo que ele é totalmente funk, ele tem uma coisa com a qual eu também me identifico de usar objetos, instrumentos, diferente tratamento dos timbres, que é quase Partimpim, sabe?”. Adriana Partimpim Facebook / Adriana Calcanhotto Doação dos direitos autorais A renda dos direitos autorais das músicas de "Só" vai ser revertida para nove iniciativas diferentes como o Redes da Maré, Ação Cidadania e Rocinha Resiste. O intuito de ajudar veio antes da concepção do disco, enquanto Adriana pensava na equipe técnica que a acompanha na estrada. "Essa ideia veio um pouco antes do que vamos chamar de 'surto'. Eu estava aqui muito pensando na minha equipe, na minha equipe de técnicos", lembra. Ela diz que pensou em gravar um single para reverter a renda para a equipe que está em casa sem trabalhar. "Já estava na minha cabeça a ideia de compor e reverter, só que isso se ampliou", diz. A renda da música com Dennis vai ser revertida para o Funk Solidário, por exemplo, e "Sol Quadrado", que teve o cavaquinho gravado por Pretinho da Serrinha vai para o projeto do músico carioca, o Cesta Somlidária. Para sua equipe, Adriana vai destinar os valores de "Lembrando da Estrada". "Quando eu volto de uma turnê eu penso que nunca mais vou fazer uma turnê. Não há corpo que aguente, é muito louco, é muito intenso, é muito rápido… Mas me peguei aqui com saudade disso", diz. E vai além da questão da saudade: "Para os técnicos é muito difícil. Claro do ponto de vista financeiro primeiro de tudo, mas eles levam vidas, são pessoas que não ficam em casa. A gente tem uma alma nômade". Turnê de casa Mesmo sem plateia física, a experiência de fazer um show online foi interessante para Adriana. A cantora reconhece que a "catarse" do público em teatros e cinemas não pode ser substituída, mas sentiu a troca durante a live que fez para o Sesc no sábado (23). Adriana Calcanhotto em live Reprodução / Vídeo "Não achei sem volta, estranho isso… Acabou o show era como se as pessoas tivessem saindo da plateia, eu subi uma escada de 12 degraus e estava no meu quarto. Não precisei passar no raio-x do aeroporto, tirar tênis… Tem lá suas vantagens", percebe. "Fiquei muito interessada, a partir do momento que eu senti essa volta das pessoas. Agora eu vou lançar o disco e pensar no que será uma turnê em casa, vamos dizer assim. É um formato a ser inventado e eu acho desafiador", continua. Além de compor, Adriana diz que tem feito faxina durante quarentena e recebe esporadicamente a visita da gata da casa vizinha à sua no Rio. "Não sei o nome que ela tem na vizinha, aqui é Alice", diz ao ser questionada do nome do animal. "Eu faço faxina como todo mundo. Cuido da casa, dos bichos, da roupa, de tudo sempre com as notícias ligadas. Nem séries, nem música", fala sobre a rotina. "Antes de dormir leio um pouco. No momento estou lendo 'Outras mentes, o polvo e a origem da consciência' [de Peter Godfrey-Smith], muito interessante", finaliza. Adriana Calcanhotto fala da turnê depois de lançar 'Margem'