Artista confirma a inspiração inventiva em disco que destaca funk sobre a quarentena e canção sobre a cidade portuguesa de Coimbra. Capa do álbum 'Só', de Adriana Calcanhotto Murilo Alvesso / Arte de Mike Knecht Resenha de álbum Título: Só Artista: Adriana Calcanhotto Gravadora: Minha música / Xirê Cotação: * * * * ♪ De um “disco emergencial”, como Adriana Calcanhotto caracterizou em live o álbum autoral Só, posto no mundo nesta sexta-feira, 29 de maio, espera-se sobretudo a conexão com o tempo em que foi criado e produzido. Primeiro álbum em que a cantora e compositora gaúcha assina sem parceiros um repertório inteiramente inédito, Só cumpre esse objetivo com brilho ao encadear nove músicas feitas pela artista durante o processo de isolamento social para a contenção da pandemia do coronavírus. A força do disco reside na aglomeração de canções que refletem sentimentos gerados em momento singular da história de humanidade. Se essas nove canções forem ouvidas isoladamente, uma ou outra música pode até sucumbir no confronto com o cancioneiro produzido pela compositora na áurea década de 1990 – bem poucas, uma ou duas, para se fazer justiça à compulsiva criadora. Mas isso nada importa no contexto em que o disco se apresenta a um mundo ainda aturdido com a necessidade de ficar em casa sem interação social. É no conjunto da obra que Só se solidifica como álbum, tornando reconhecível a assinatura intransferível de Adriana Calcanhotto, delineada ao longo dos últimos 30 anos, sobretudo a partir do segundo álbum da artista, Senhas (1992), disco no qual a cantora tomou as rédeas da carreira fonográfica e corrigiu os erros do equivocado álbum de estreia Enguiço (1990). Adriana Calcanhotto lança o álbum 'Só' com nove canções inéditas compostas durante a quarentena Leo Aversa / Divulgação No conjunto da obra exposta em Só, uma composição em especial sobressai pela inventividade. Trata-se do funk Bunda lê lê, gravado pela cantora com o DJ Dennis. Na arquitetura engenhosa da composição, Calcanhotto se apropria de termos recorrentes nas letras eróticas dos batidões cariocas – “Bunda”, “Senta” e “Vai” – para criar letra imperativa sobre a necessidade de a população “sentar a bunda” em casa sem a tentação de descumprir o isolamento social. Bunda lê lê segue o trilho de Meu bonde, o antenado funk de 150 BPM apresentado por Calcanhotto no álbum anterior Margem (2019). Em Só, o apego crescente da compositora ao gênero fica exposto já na abertura do álbum com a batida funkeada do violão que introduz Ninguém na rua, retrato cinzento da esvaziada paisagem urbana, esculpido pela artista sob a ótica do confinamento em casa situada em bucólico e afastado reduto da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Era só é canção de amor ao estilo de Tua (2009) e de tantas outras feitas por Calcanhotto, com a diferença de que, na poesia da atual canção, o amor precisa se bastar longe da visão do ser amado por conta do isolamento social. O toque do piano de Zé Manoel sublinha as intenções da canção. Embebida em melancolia, a canção Tive noticias soa mais aliciante e se insinua como possível tema de novela por ser canção de amor sobre um coração em quarentena, nas trevas, como poetiza a autora em balada em que o DNA da compositora é facilmente identificável. Samba com letra escrita sob ótima similar à da poesia da canção Era só, Eu vi você sambar espouca flash da memória afetiva que culta momento de encantamento e paixão já capturado há tempos pelas lentes do amor. Samba gravado com arranjo que embute antropofagicamente tanto o grave do funk quanto uma batida do norte do Brasil, Eu vi você sambar soa como sobra do álbum O micróbio do samba (2011), assim como Sol quadrado, luminoso samba de molde tradicional em que a autora expõe finas ironias no trato conjugal em gravação de menos dois minutos. Da paisagem da janela, Calcanhotto manda outro flash sobre o confinamento em O que temos, com direito a um recado político, dado com o som de panelas batendo ao fim da faixa. Coleção de flashes de viagens em turnês, a canção Lembrando da estrada não chega a empolgar na safra 2020 da compositora, mas soa mais sedutora do que a insossa abordagem de voz-e-violão feita por Calcanhotto em live no último sábado, 23 de maio. Adriana Calcanhotto brilha como compositora no funk 'Bunda lê lê' e na canção 'Corre o munda' Leo Aversa / Divulgação O arranjo de Lembrando da estrada faz lembrar que Só foi disco de criação solitária, mas de formatação coletiva, feita à distância. Produtor musical do aclamado último álbum de Fafá de Belém, Humana (2019), Arthur Nogueira capitaneou a produção deste 16º álbum da discografia de Calcanhotto – incluídos na conta os três discos assinados pela artista com o heterônimo infantil Adriana Partimpim. Arregimentados por Nogueira, músicos de quatro cidades do Brasil – Belém (PA), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP) – contribuíram remotamente com a formatação das faixas. Nomes ligados à cena eletrônica de Belém (PA), Mateus Estrela – apresentado sob o codinome artístico STRR – e Leo Chaves são músicos que deram corpo ao cancioneiro emergencial de Adriana Calcanhotto em Só, atuando como instrumentistas e arranjadores. Gravado com os toques de músicos como o guitarrista Allen Alencar e o baterista Thomas Harres, o disco é belamente encerrado com Corre o munda, música de batida funkeada em que a autora confinada e solitária semeia a esperança de voltar à cidade portuguesa de Coimbra, para onde iria retornar neste primeiro semestre, dando continuidade ao ofício de ensinar Letras em universidade local, em rota de viagem estancada pela pandemia do covid-19. Nesta faixa inebriante que embute sons evocativos da música de Portugal em atmosfera eletrônica, Calcanhotto se caracteriza na letra como “compositora sem eira nem beira” por não encontrar rima para Coimbra. O álbum Só desmente a sentença implacável dada com verve pela autora à si própria. Da janela, sob o ilimitado raio de visão do poder da criação musical, Adriana Calcanhotto fez Arte ao gestar cancioneiro inspirado em que, entre canções e funks da quarentena, a estilista tropicalista refina sensações do isolamento social sem sair de casa e sem pisar no terreno da obviedade, mas correndo o mundo (e a munda…) nas asas da poesia.