Capa do álbum 'Amigos novos e antigos', de Vanusa Pintura de Tebaldo ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Amigos novos e antigos, Vanusa, 1975 ♪ Se a gente falasse menos na internet e ouvisse mais discos como Amigos novos e antigos, álbum lançado por Vanusa em 1975, talvez compreendesse mais a crueldade de ter transformado em piada essa cantora e compositora de origem paulista e criação mineira. Em setembro de 2009, um rolo compressor virtual passou sobre a trajetória de Vanusa Santos Flores quando caiu e se reproduziu na rede um vídeo em que a cantora se atrapalhava com os versos e o ritmo do Hino Nacional Brasileiro (Francisco Manuel da Silva, 1822, com letra de Osório Duque Estrada, 1909) em intervenção musical da artista em cerimônia realizada na Assembléia Legislativa de São Paulo em março daquele ano de 2009. Nascida em 1947, Vanusa já manifestou naquela atrapalhada apresentação sintomas dos problemas de saúde que, aos poucos, retirariam de cena essa cantora que despontara em 1967 no reino da Jovem Guarda. Após discos editados no fim dos anos 1960 com baladas e com rocks de aura psicodélica, a artista titubeou em álbum de 1971 e reencontrou o caminho do sucesso dois anos depois ao trocar a gravadora RCA pela Continental. Nessa companhia fonográfica, a cantora lançou em 1973 e 1974 dois álbuns intitulados Vanusa. O primeiro perpetuou a gravação de Manhãs de setembro, impetuosa canção de Vanusa e Mário Campanha que se tornaria o maior sucesso popular da artista, liderando as paradas de 1973. Já o disco de 1974 destacou a dramática canção Sonhos de um palhaço, grande criação de dois compositores, Antonio Marcos (1945 – 1992) e Sérgio Sá (1953 – 2017), que seriam fundamentais na trajetória profissional de Vanusa. Com o adendo de que a conexão com Antonio Marcos – companheiro da cantora desde 1972 – já tinha sido transposta há anos para a vida pessoal da artista quando, em 1975, Vanusa lançou o álbum Amigos novos e antigos, LP de capa dupla no qual tanto Antonio Marcos como Sérgio Sá estavam presentes na ficha técnica, tão luxuosa quanto a capa. Disco que marcou a volta de Vanusa para a RCA, gravadora na qual a cantora estreara em 1967, Amigos novos e antigos representou bela tentativa da artista de se aproximar do universo da MPB sem se afastar da canção de cepa mais popular. Esse movimento foi feito em grande estilo por Vanusa. Basta lembrar que a interiorizada música-título Amigos novos e antigos (1974) – lançada sem repercussão por Maria Alcina no ano anterior – era título do disputado cancioneiro de João Bosco e Aldir Blanc (1946 – 2020), dupla de compositores saudada desde 1972 com uma das sensações da MPB naquela década de 1970. Outra maravilha contemporânea da época era a obra de Luiz Melodia (1951 – 2017), de quem Vanusa lançou o samba Congênito em Amigos novos e antigos, disco produzido por Moracy do Val e Lincoln Olivetti (1954 – 2015) com arranjos distribuídos entre Chiquinho de Moraes, José Briamonte, Sérgio Sá e o próprio Lincoln. Nessa seara, Chiquinho de Moraes sobressaiu no disco com a orquestração lapidar da gravação original de Paralelas, música de Belchior (1946 – 2017), compositor cearense que alcançaria a consagração popular no ano seguinte com o álbum Alucinação (1976). Assim como Congênito, Paralelas foi música apresentada na voz afinada e potente de Vanusa, com a letra original, e não com a modificação feita por Belchior nos versos finais quando o disco da cantora já estava pronto. A bem da verdade, Erasmo Carlos também já tinha na manga em 1975 essa canção em que Belchior versou sobre a automação do Homem na selva urbana das cidades, mas o registro de Paralelas pelo Tremendão somente veio ao mundo no ano seguinte, no álbum Banda dos Contentes (1976). Na contramão do registro íntimo da canção por Belchior, apresentado pelo autor em disco de 1977, a interpretação exteriorizada de Paralelas por Vanusa foi fiel à natureza expansiva do canto da artista. Embora a intérprete tenha experimentado tons mais comedidos nesse disco de 1975 ao dar voz às canções Moleque (creditada a um compositor apresentado somente como Daniel na ficha técnica) e Cinema mudo (do então novato Carlinhos Vergueiro), faixa que evidenciou o tom orquestral dos arranjos do álbum Amigos novos e antigos, Vanusa cantava habitualmente para fora. Foi nesse tom assertivo que a artista apresentou Rotina, canção composta pela própria Vanusa com Mário Campanha – parceiro da artista na criação do megahit Manhãs de setembro – com a veia feminista que iria pulsar com força ainda maior no repertório da artista em discos do fim dos anos 1970. “Meu caminho é sempre ter que me procurar”, concluiu a artista ao fim da letra de Espelho, canção autoral feita com Sérgio Sá em que Vanusa encarou o reflexo de uma mulher de então 28 anos que já acumulava perdas e ganhos na bagagem existencial e musical. Empoderada desde a década de 1960, Vanusa se aproximou da MPB no álbum Amigos novos e antigos sem anular a personalidade musical que vinha construindo desde o início dos anos 1970 após o fim da Jovem Guarda. Inusitada parceria de Raimundo Fagner com Antonio Marcos, Coração americano simbolizou essa ponte e bateu no disco com latinidade sul-americana que se se entranhava pela MPB sobretudo através da obra de Milton Nascimento. Não por acaso, na disposição das 12 faixas do álbum, a música Coração americano foi alocada ao lado da regravação de Outubro (1967), uma das parcerias seminais de Milton Nascimento com o poeta letrista Fernando Brant (1946 – 2015). Entre canções esquecidas como Amor desempregado (Antonio Marcos, Mario Marcos e Lincoln Olivetti) e Vinho rosé da rainha sem rei (Gabino Correa e Vanusa), o álbum Amigos novos e antigos guardou pérolas raras da MPB como Muros de alecrim (César Costa Filho e Jésus Rocha), uma das inspiradas composições do repertório deste álbum que permaneceu como o melhor disco de Vanusa. A cantora daria prosseguimento ao mergulho na MPB no álbum seguinte, 30 anos (1977), disco menos imponente no qual lançou Avohai (Zé Ramaho), mas acabou voltando para uma linha de canção mais popular a partir do álbum Viva Vanusa (1979). Até ser progressivamente jogada à margem do mercado fonográfico a partir dos anos 1980 – década cruel para cantores que não se enquadraram na linha tecnopop da música brasileira de então – e bem mais tarde, já nos anos 2010, resgatada por Zeca Baleiro, arquiteto do último álbum da artista, Vanusa Santos Flores (2015). Com capa que expôs a cantora em óleo pintado por Tebaldo, o álbum Amigos novos e antigos ficou para a posteridade como momento áureo dessa trajetória e, em 2020, 45 anos após o lançamento, resiste como a amostra mais consistente do outrora ardente talento vocal de Vanusa Santos Flores, cantora para ser levada a sério pela história que construiu na música brasileira.