
História do cantor se confunde com a do ritmo em SP; leia entrevista. Ele passou por origem na Baixada, ostentação na capital, estouro dos clipes, pop sexual e até atentado a tiros. Quem descarta o sucesso do funk e de seus MCs como "modinha passageira" tem que conhecer a história de Neguinho do Kaxeta. Ele completa 20 anos de carreira em alta. Sua música "Sou vitorioso", com o MC Lele JP, está hoje entre as 10 mais tocadas no YouTube no Brasil. O sucesso desta e de outras faixas recentes coloca Júlio César Ferreira, o Neguinho do Kaxeta, como 21º artista mais ouvido no YouTube no Brasil atualmente. Mas sua trajetória é longa e acompanha a evolução do funk de SP. Ele começou adolescente na Baixada Santista, berço do funk em SP. Cantava sobre a realidade na Caxeta, favela de São Vicente que gerou seu nome artístico. A cena era precária, mas crescia. Quando o funk estourou na capital, na onda da ostentação em 2012, ele renovou o discurso e estourou "As novinha tão a mil", sobre carros, motos e roupas de luxo. Ele embarcou na revolução dos clipes da Kondzilla. Teve vários vídeos de sucesso no canal, como "A firma tá a mil", "Time de monstrão", "Problemático" e "Chave de ouro". A trajetória também passou por uma fase triste: a onda de atentados contra MCs. Após um show em 2012, ele levou quatro tiros e sobreviveu. O crime nunca foi esclarecido. Um ano depois, o MC Daleste morreu baleado no palco. Mesmo sob ataque, o funk cresceu com uma novidade: os escritórios de MCs. Neguinho do Kaxeta hoje é contratado da GR6, empresa cheia de artistas com a metade de sua idade. Já com o funk no centro do pop brasileiro e se juntando a outros estilos, ele se adaptou às letras românticas em "Preta" e gravou "Bumbum otimista" com a Turma do Pagode. Em 2020, aos 34 anos de idade, pai de três filhos, comemora duas décadas de hits com um DVD e com "Sou vitorioso", que retoma o discurso consciente lá do início. Ele passou por MCs que tiveram megahits e não seguirem o ritmo, como Guimê, Bin Laden, Fioti, João… E também viu surgir carreiras mais estáveis, como de Livinho, Zaac, Jerry Smith, Kevinho… O funk de SP se consolidou e tem hoje carreiras menos efêmeras. Mas poucos MCs viveram tanta coisa quanto Neguinho do Kaxeta. Ele contou ao G1 o que aprendeu nestes 20 anos. Leia abaixo: G1 – O que você fez de diferente que rendeu esse sucesso mais longo? Neguinho do Kaxeta – Nunca tive uma explosão como de outros MCs – que estouraram até mundialmente. A música deles bateu, mas depois nunca conseguiram fazer algo maior do que aquilo. Eu nunca gostei do sucesso passageiro, e me baseei em coisas pequenas, mas sólidas. Tem que ter mais coração que dinheiro. Até 2012, não existia o cachê de hoje, era bem baixo. Depois aumentou, na transição do funk “consciente” para o “ostentação”. Nessa fase eu consegui me adaptar. Era uma nova geração, uma nova época. Teve muita gente boa "das antigas" que não conseguiu acompanhar. Entrou muito moleque novo, uma série de escritórios. MC Neguinho do Kaxeta Divulgação G1 – Como você se adaptou? Neguinho do Kaxeta – Não fiz nada de diferente, só abri a mente. Vi que o mundo não girava só ao meu redor. Era uma nova era que tinha os moleques fazendo videoclipe. Não era só o áudio. Antes, as pessoas me ouviam, mas não sabiam quem eu era. O videoclipe ajudou tanto os MCs quando a periferia. Eu parei para ver os moleques que estavam fazendo o funk novo, ostentação, falando de carro, moto, corrente. E vi que eu conseguia colocar minha pegada consciente ali. E fiz “As novinha tão a mil”. Aí consegui voltar para o mercado, e trabalhei sozinho, sendo meu próprio empresário, como fazia antes. Em 2013 lancei “A firma tá a mil”, autoria e produção minha, investimento próprio, tudo. Aí não parei de trabalhar mais. Entrei para a GR6 e criei uma sintonia com eles. Tenho 34 anos, tenho que me adequar à nova geração, andar com os novos, mas também não posso me comportar como um moleque. G1 – Como você vê o funk de SP hoje: o que é melhor e pior do que quando você começou? Neguinho do Kaxeta – Hoje, o bom é que você tem um suporte da empresa, uma estrutura. Mas o ruim é que muitos MCs acham que um escritório vai cair do céu. Ficam parados esperando. E no meu caso foi diferente. Já cheguei no escritório com bagagem. E acho que o MC era mais respeitado antigamente. Era pouco dinheiro, mas tinha mais respeito. G1 – O que você quer dizer, na prática, com mais respeitado? Neguinho do Kaxeta – Muitos acham que ou é vida de vagabundo, ou de playboy. Que ninguém teve dificuldade para chegar ali, que é filhinho de papai. Alguns até são, hoje em dia. Mas a grande maioria vem da periferia. Vários tiveram sorte, porque a primeira música “bateu” do nada. Mas muitos sofreram. Eu falo por experiência própria. Claro que alguns de deslumbram, já aconteceu comigo. Não era acostumado a ter dinheiro. G1 – Como foi essa virada no cachê em 2012 que você citou? Como era antes? Neguinho do Kaxeta – Eu nem imaginava que o funk fosse virar essa máquina. Sempre fiz show, desde 2000. Em 2006 comecei a emplacar músicas e ganhar um dinheirinho. O cachê não passava de 1,5 mil reais, mas isso era muito dinheiro na época. Então eu sempre consegui me manter, tinha meu carrinho, minha moto. Mas não pensava em expandir meu trabalho. Não tinha funk na capital. Se eu fosse mais inteligente, teria expandido a parada, e hoje seria empresário de vários moleques, dono de escritório. Hoje o cachê é várias vezes maior. G1 – Você acha que seu público mudou nesses 20 anos? Neguinho do Kaxeta – Eu faço funk para a periferia. Porque a periferia tem que ouvir a mensagem boa, seja de consciência, seja de amor. Mas se encaixar para outras classes, tudo bem. Acho que quem consome meu som e gasta mais dinheiro que todo mundo é a periferia. Mas, com o sucesso em outras classes, a gente mostra que o que vem de lá pode alcançar qualquer lugar. G1 – Ao mesmo tempo que cresceu, o funk foi alvo de preconceito e violência. Você mesmo foi alvo, e o problema parece se manter, vide o massacre recente em Paraisópolis. Como vê isso? Neguinho do Kaxeta – O preconceito vai sempre existir, porque é um ritmo periférico. E vai além da música. Se um cara coloca o som do carro tocando na sua porta, poderia ser um forró antigamente, mas hoje é o funk. E há um problema de educação. Tem gente que não vai respeitar nem a mãe, quanto mais abaixar o som por causa do vizinho. E tem os problemas sociais da periferia, que não é o funk que vai resolver, mas a gente pode passar uma bela informação através do som. G1 – Mas você acha que isso é um problema de educação na periferia ou também das classes altas e da polícia? Neguinho do Kaxeta – As classes altas falam mal, mas dançam nas festas, os filhos querem ouvir. E longe de mim falar mal da polícia, mas é igual no funk: tem pessoas preparadas e outras não. Essas não vão durar, seja no funk ou outra profissão. E na periferia não tem um lugar, um centro comunitário onde as pessoas podem fazer seus eventos. Hoje posso frequentar balada de rico, mas quem mais pode? Eles estão fazendo o movimento deles, só não têm a informação correta. Você prender alguém que não ensinou é fácil. Bater é fácil, mas não tem pessoas educando e não tem um espaço para as pessoas curtirem a parada. Eu não ganho com baile de rua hoje. Mas é de onde eu vim, onde me consagrei. As pessoas precisam se divertir. Existem os baderneiros, como na festa de qualquer classe social. Não posso falar que é um erro do moleque que não baixa o som, ou do policial. A gente vai puxar um erro que está lá em cima, nos governos. Receita de brega-funk