Capa do álbum 'Chama acesa', de Ivan Lins Ivan Klingen com arte de Ney Távora ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Chama acesa, Ivan Lins, 1975 ♪ Compositor, cantor e pianista descendente da linhagem soberana de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), o carioca Ivan Guimarães Lins entrou em cena em 1965, aos 20 anos, como integrante do Alfa Trio. Na noite da Tijuca, bairro da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ) onde viera ao mundo em 16 de junho de 1945, o jovem pianista do Alfa Trio exercitou no anonimato o aprendizado das lições que tivera ao ouvir com atenção o mestre Luiz Eça (1936 – 1992). O Brasil somente tomaria conhecimento do nome de Ivan Lins em 1970, ano em que o compositor debutante defendeu O amor é o meu país – música que fizera com Ronaldo Monteiro de Souza, parceiro desses tempos de juventude – na quinta edição do Festival Internacional da Canção (FIC). Ivan Lins saiu da competição sob suspeita (injusta) de artista ufanista, crime inafiançável no julgamento dos patrulheiros ideológicos do Brasil do ame-o ou deixe-o. Em contrapartida, o compositor ganhou o prêmio de ver e ouvir Madalena – samba cheio de soul que fizera com o mesmo Ronaldo Monteiro de Souza – ganhar a voz de Elis Regina (1945 – 1982) e as paradas naquele ano de 1970. O aval fundamental de Elis ajudou a abrir as portas da indústria fonográfica para Ivan. Contratado para o elenco da Forma, gravadora então abrigada sob o arco da multinacional Philips, o cantor gravou dois álbuns na companhia, Ivan Lins, agora… (1970) e Deixa o trem seguir (1971), aos quais se seguiram, via Phonogram / Philips, um terceiro álbum de título sintomático, Quem sou eu? (1972). Nestes três discos, Ivan Lins ainda estava à procura de identidade musical que começou a ser delineada com o encontro do artista com o poeta e compositor paulista Vitor Martins. Com as letras atentas e metafóricas de Vitor, Ivan se engajou na luta da MPB em favor da liberdade de expressão, inclusive a musical, tornando sem eco o precipitado coro que identificara no romantismo da canção O amor é o meu país traço inexistente de adesismo ao governo ditatorial do Brasil dos anos 1970. Apresentada no quarto álbum do artista, Modo livre (1974), com a inclusão da gravação de Abre alas neste que foi o primeiro dos dois discos lançados pelo cantor através da gravadora RCA, a parceria de Ivan Lins com Vitor Martins foi consolidada no quinto álbum do cantor, Chama acesa, produzido por Raymundo Bittencourt sob direção artística de Carlos Guarany. Lançado em 1975, o álbum Chama acesa flagrou Ivan Lins a dois passos (ou dois anos) da consagração como cantor e compositor. Vivida pelo artista na segunda metade dos anos 1970, a partir da contratação pela gravadora Odeon, a fase consagradora rendeu lote de álbuns – Somos todos iguais nessa noite (1977), Nos dias de hoje (1978), A noite (1979) e Novo tempo (1980) – dignos de figurar em qualquer antologia da música brasileira rotulada como MPB. Contudo, antes destes discos recheados de sucessos (alguns popularizados na voz do autor e outros propagados em registros de cantoras como Elis e Simone), houve Chama acesa, um dos álbuns mais “difíceis” da discografia de Ivan Lins. O cantor já andava se estranhando com a diretoria da gravadora RCA – por causa de discordâncias na gravação do disco anterior Modo livre – e, já buscando uma saída (da companhia), fez álbum radical, com nítido toque jazzístico na arquitetura de músicas como Demônio de guarda. Com letra que refletiu a tensão entranhada no repertório do disco, Demônio de guarda foi uma das cinco parcerias de Ivan com Vitor Martins incluídas entre as 11 faixas do álbum Chama acesa. Eco do barroco mineiro da obra de Milton Nascimento, Lenda do Carmo – outra de Ivan com Vitor – soou como se fosse título extraviado do cancioneiro do mentor do Clube da Esquina, evidenciando o acento jazzístico de algumas faixas do álbum Chama acesa e o entrosamento da banda formada por Ivan Lins (piano, órgão e violão) com os músicos Fred Barbosa (baixo e percussão), João Cortez (bateria e percussão), Ricardo Ribeiro (flauta e saxofones) e Gilson Peranzzetta, pianista que teria papel fundamental, como arranjador, na expansão da obra de Ivan Lins em discos posteriores. Corpos – música que ganharia a voz de Alaíde Costa no álbum Coração (1976) e um registro ao vivo de Elis Regina no disco Transversal do tempo (1978) – exemplificou a densidade do repertório de Ivan Lins naquele ano de 1975. “Não me afague o rosto com essa mão farpada”, suplicou o cantor no samba Sorriso da mágoa, composto por Ivan sem parceiro e alocado na abertura do disco, já anunciando o clima pesado que reverberou nos versos de Nesse botequim – outra música somente de Ivan em que o compositor citou o samba Águas de março (Antonio Carlos Jobim, 1972) – e na letra da música-título Chama acesa, escrita por Paulo César Pinheiro, também parceiro de Ivan em Poeira, cinza e fumaça. Música de Ivan com Vitor Martins, Ventos de junho soprou lirismo interiorano que a dupla de compositores iria desenvolver com mais apuro em composições como Sertaneja (1980). Em Joana dos barcos (beira-mar), o lirismo poético de Vitor Martins mergulhou em águas feministas, mantendo hasteada a bandeira da liberdade da mulher em mundo machista. Com a assinatura de Ronaldo Monteiro de Souza, parceiro dos primeiros sucessos, Ivan reapresentou no álbum Chama acesa o samba Palhaços e reis (1973) – lançado há dois anos pela cantora Silvia Maria, regravado em 1974 pelo grupo MPB4 e revivido por Ivan em gravação em que saltou aos ouvidos o toque percussivo do piano do artista – e Não há porque. Também gravada Célia (1947 – 2017) naquele mesmo ano de 1975, Não há porque foi outra música que fez do disco Chama acesa um retrato da tensão social da época na rima de versos como “Um estranho ao me ver percebe claramente / Nas entranhas uma dor que fere lentamente”. Se os poetas já estavam à flor da pele, o melodista ainda mostraria progressos em discos futuros. Álbum de transição na carreira fonográfica de Ivan Lins, Chama acesa teve o mérito de iluminar um artista em nítido processo de maturação, se permitindo inclusive experimentar o arrojo musical deste disco de 1975.