Capa do álbum 'Ando só numa multidão de amores', Maysa, 1970 Antonio Guerreiro ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Ando só numa multidão de amores, Maysa, 1970 ♪ “Me deixe só / Errada, complicada / Não posso a tua paz / De nada me adianta a tua voz / Me cansa o teu perdão”, desabafou Maysa em 1970, em tom suplicante, no canto falado que abriu – sobre base orquestral – a gravação de Me deixe só, parceria da cantora e compositora com Roberto Menescal. Música então inédita, Me deixe só soou como recado certeiro de Maysa Figueira Monjardim (6 de junho de 1936 – 22 de janeiro de 1977) no penúltimo álbum da artista, Ando só numa multidão de amores, disco de título bandeiroso, reproduzido de verso de poema do britânico Dylan Thomas (1914 – 1953). Marcando a volta de Maysa ao universo musical mais tradicional dos primeiros discos da artista, o álbum Ando só numa multidão de amores foi lançado em 1970 pela gravadora Philips sem a repercussão a que merecia essa estrela movida a paixão, matéria-prima do canto grave. Produzido por Roberto Menescal, com arranjos divididos entre Menescal e Luiz Eça (1936 – 1992), o disco legou para a posteridade a expressiva capa em cuja reticulada foto em preto e branco de Antonio Guerreiro (1947 – 2019) sobressaíram os olhos verdes da cantora, dois “oceanos não pacíficos”, como caracterizara o poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) ao versar sobre a caudalosa correnteza existencial de Maysa. Voz dissonante da quatrocentona elite paulistana, a indomada cantora de origem carioca quebrara tabus sociais e familiares na década de 1950 ao se lançar como cantora e compositora, tendo sido a primeira mulher a debutar no mercado fonográfico do Brasil com álbum inteiramente autoral, Convite para ouvir Maysa (1956). Numa época em que colegas contemporâneas como Dolores Duran (1930 – 1959) tiveram que transpor obstáculos para se impor como compositoras no universo machista da indústria do disco, Maysa chegou ao mundo da música com voz própria, expondo desilusões e solidões em repertório dominado pelo samba-canção, gênero melodramático pela própria natureza. O álbum Ando só numa multidão de amores rebateu nessa tecla em repertório enquadrado em tradicional moldura orquestral. Embora o samba-canção Molambo (Jayme Florence e Augusto Mesquita, 1953) tenha propagado trégua após tormenta conjugal, na gravação que abriu o disco, Ando só numa multidão de amores resultou num dos álbuns mais tristes e angustiados de Maysa. Um álbum em que a cantora exprimiu a solidão cotidiana que, na vida real, vinha tentando diluir em doses regulares de cigarro e álcool. Dentro desse universo dolente, pautado pela ausência de afeto, a lembrança do bolero Yo sin ti – standard do cancioneiro do compositor e pianista mexicano Arturo Castro – fez todo sentido em repertório lacrimoso. Na medida exata da emoção, sem pecar por excessos de interpretação, Maysa fez cair tanto Chuvas de verão (Fernando Lobo, 1949) como Três lágrimas (Ary Barroso, 1941), samba-canção abordado pela cantora com pungente delicadeza, em amostra de que a artista sabia dosar com precisão a paixão entranhada na voz encorpada. O arranjo de Luiz Eça resultou perfeito ao alternar piano, violão e orquestra, mudando o clima na medida em que Maysa recordava cada uma das três lágrimas. Ao dar voz à canção Assim na terra como no céu (Roberto Menescal, Nonato Buzar e Paulinho Tapajós), música da trilha sonora da homônima novela exibida pela TV Globo de julho daquele ano de 1970 até março de 1971, a cantora manteve a introspecção dominante no álbum Ando só numa multidão de amores, mas elevou brevemente o tom ao vislumbrar janela entreaberta para escapar da solidão. Essa luz logo foi encoberta pela escuridão da noturna faixa seguinte, Eu (1968), um dos títulos menos conhecidos do cancioneiro dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, também autores de Que eu canse e descanse, então inédito samba-canção da dupla, também gravado por Marcos naquele ano de 1970. Outro samba-canção, este enevoado pelo abolerado arranjo orquestral, Suas mãos (Pernambuco e Antonio Maria) manteve pesado o clima desse álbum, embora o canto dosado de Maysa amenizasse esse peso. A atmosfera foi desanuviada pela suavidade da interpretação em inglês de Bonita (Antonio Carlos Jobim, Gene Lees e Ray Gilbert, 1964), eco da incursão de Maysa pelo universo da bossa nova no álbum O barquinho (1961). A bossa também ecoou, fora de hora, no fim do arranjo de Resposta (Maysa, 1956), samba-canção do autoral primeiro álbum da cantora. A regravação soou sintomática 14 anos após o registro original. Não, ninguém conseguiria calar a chama de Maysa, nem mesmo quando ela abrandou o canto ao mergulhar em As praias desertas (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958) e muito menos quando, sete anos depois do álbum de 1970, fatal desastre de carro tiraria a cantora definitivamente de cena. Maysa disse o que pensava, fez o que gostava e cantou aquilo em que acreditava, caso de Quando chegares (1960), o samba-canção de Carlos Lyra que encerrou o álbum Ando só numa multidão de amores em clima aconchegante. A interpretação acariciante da cantora simbolizou facho de esperança de que a chegada do amor amado iria por fim (temporário…) à solidão entranhada neste bonito disco de 1970 que, ouvido e posto em perspectiva 50 anos após o lançamento, somente reitera que, não, nunca vai passar a chama da errante, “complicada” e imortal Maysa.