Capa do álbum 'João Gilberto en México', de João Gilberto R. Lozano ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – João Gilberto en México, João Gilberto, 1970 ♪ Assim como Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), fornecedor do repertório fundamental da bossa nova, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (10 de junho de 1931 – 6 de julho de 2019) enxergou no aeroporto, não uma saída emergencial, mas uma porta para a expansão da carreira nos Estados Unidos, país que exportou a bossa brasileira para o mundo a partir de 1962. Como muitos integrantes da turma da qual foi o guia musical e espiritual, João foi para os Estados Unidos na década de 1960. Lá, o cantor e violonista baiano gravou disco com o saxofonista norte-americano de jazz Stan Getz (1927 – 1991) – Getz / Gilberto (1964), álbum de 1964 que ampliou a visibilidade mundial da bossa nova – e teve uma filha, Bebel Gilberto, nascida em Nova York (EUA) em 1966. Na sequência da viagem, uma escala no México – prevista para durar dez dias, mas que se estendeu por mais de um ano – gerou o quarto álbum solo do artista, lançado em 1970, nove anos após João Gilberto (1961). No México, o disco foi editado pelo selo Orfeon com o título Joao Gilberto en México (sem o til no João para obedecer a grafia da língua espanhola). No Brasil, o álbum saiu pela gravadora Philips com outra capa e com outro título, abreviado para João Gilberto, mas com o mesmo fino repertório composto por onze músicas cuja gravação totalizou 27 minutos de puro deleite. O disco foi gravado com arranjos do violonista Oscar Castro Neves (1940 – 2013), importado de Los Angeles (EUA). Castro Neves arranjou as onze faixas com absoluta fidelidade à estética minimalista do artista. Embora a contribuição do arranjador tenha sido fundamental para dar forma apurada ao disco, um dos preferidos de Bebel Gilberto a título de curiosidade, o álbum João Gilberto en México existiu sobretudo por conta da afinidade surgida entre João e Mariano Rivera Conde (falecido em 1977), produtor do disco gravado com os toques de músicos como o brasileiro Chico Batera e o percussionista mexicano José Luis Ferra. Todos – produtor, arranjador e músicos – ficaram subordinados evidentemente ao toque soberano do violão de João. Violão mágico do qual João conseguiu evocar o som de trem a deslizar pelos trilhos na condução da faixa The Trolley song (Hugh Martin e Ralph Blane, 1944, em versão em português de Haroldo Barbosa, 1970). Talvez até pelo fato de que o artista estava morando fora do Brasil na época do lançamento do álbum, João Gilberto en México resultou em um dos títulos de menor visibilidade na discografia do cantor no mercado fonográfico brasileiro. É fato que, a rigor, o disco nada acrescentou à revolução já feita pelo gênio nos álbuns Chega de saudade (1959), O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961) – tripé fonográfico que sustentou toda a trajetória posterior do artista. Contudo, ouvido 50 anos após a edição original, o álbum João Gilberto en México soa extremamente aliciante, roçando a perfeição de Amoroso (1977), o álbum mais aclamado de João após os três discos iniciais. E a beleza do álbum de 1970 – cabe ressaltar – foi fruto também da habilidade do arranjador Oscar Castro Neves ao orquestrar com a devida leveza as cordas que embalaram o samba-choro João Marcelo – tema instrumental composto por João em homenagem ao filho nascido em 1960, fruto da união de João com Astrud Gilberto – e o bolero Farolito (1939), standard do cancioneiro do compositor mexicano Agustín Lara (1897 – 1970). Um dos principais difusores do bolero. Agustín Lara morreu no ano em que João gravou esse álbum mexicano e, além de simbólica, a presença de sucesso do compositor no repertório do disco mostrou a capacidade de João de limar através do canto cool todo e qualquer traço de drama, combustível do gênero. Exemplar, nesse sentido, foi a abordagem do bolero mexicano Besame mucho (Consuelo Velásquez, 1940) no álbum. João Gilberto fez de Besame mucho uma carícia dita à meia-luz, ao pé do ouvido. Alocada ao fim do disco, a gravação do bolero Eclipse (1940), do compositor cubano Ernesto Lecuona (1895 – 1963), também iluminou a extraordinária capacidade de João de extrair a essência da música. Embora naturalmente povoado por boleros e influenciado pelo país onde foi gravado, como reiterou Acapulco (tema de autoria do próprio João, compositor bissexo), o álbum João Gilberto en México também caiu no suingue do samba à moda brasileira. Ou, mais precisamente, à moda de João Gilberto. Aberto com o samba De conversa em conversa (Lúcio Alves e Haroldo Barbosa, 1947), lançado na voz da cantora Isaura Garcia (1923 – 1993), o álbum seguiu com deslumbrante abordagem de Ela é carioca (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1963) em que João pareceu celebrar na voz e no violão a gravação icônica do conjunto Os Cariocas. Na sequência, o fluente registro vocalizado de O sapo (The frog) (1967) reconectou João com a bossa do xará João Donato, amigo e parceiro dos anos 1950, em arranjo cheio de suingue. Pérola então recente, mas já esquecida no baú de joias da música mais sofisticada da década de 1950, o samba-canção Esperança perdida (Antonio Carlos Jobim e Billy Blanco, 1956) veio adornado com cordas e representou tributo do artista ao cantor Lúcio Alves (1927 – 1993), um dos inspiradores de João na busca pela batida perfeita. Perfeição encontrada pelo cantor e violonista ao gravar Samba da pergunta (Pingarilho e Marcos Vasconcellos, 1966), composição também conhecida como Astronauta. O registro celestial de Astronauta foi exemplo de que, no México ou no Brasil, a bossa e o canto de João Gilberto foram coisas de outro mundo.