Capa do álbum 'Baihuno', de Belchior Arte de Belchior ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Baihuno, Belchior, 1993 ♪ “Sessão de nostalgia? Isso é lá com minha tia / Alô, presente, estou chegando / Alô, futuro, já vou”, avisou Belchior em versos da canção Arte final, parceria do artista cearense com Jorge Mello e Gracco. Lançada pelo cantor no álbum Elogio da loucura (1988), Arte final reapareceu cinco anos depois em álbum, Baihuno (1993), em que Antonio Carlos Belchior (26 de outubro de 1946 – 30 de abril de 2017) tentou se fazer presente no mercado fonográfico – mesmo à época já tendo sido posto à margem desse mercado pela implacável indústria do disco – e vislumbrou um futuro. Que não veio. Disco de repertório majoritariamente inédito que rebobinou temas recorrentes no cancioneiro do compositor, cronista das angústias e desilusões de ex-hippies e de migrantes interioranos que se viram sem sonhos e sem dinheiro na selva das cidades, Baihuno foi um dos álbuns mais ambiciosos de Belchior. Já pela capa, criada pelo artista com reprodução de boneco da arte popular do Ceará, foi possível identificar zelo que já vinha escasseando na discografia do cantor revelado em 1971 com single no qual registrou Na hora do almoço, densa canção apresentada em festival daquele ano. Produzido por Jorge Gambier e editado via Movieplay, gravadora de gerenciamento belga que se instalara no Brasil nos anos 1990 para investir no boom do CD, o álbum Baihuno foi o último esforço autoral de Belchior para reeditar o vigor que o artista mostrara ao longo dos anos 1970, década em que se impôs com cancioneiro e com discos relevantes em que expôs a solidão da geração sufocada pela opressão da ditadura e do sistema capitalista – com menção honrosa para o álbum Alucinação (1976), pedra fundamental da obra do cantor. Em Baihuno, disco batizado com vocábulo criado com a junção das palavras baiano (termo jocoso usado por paulistanos em alusão genérica aos povo nordestino) e huno (termo que caracteriza os asiáticos que rumaram para a Europa na Idade Média), Belchior bateu e rebateu na tecla da exclusão social dos migrantes nordestinos nas metrópoles. “Aqui, Nordeste, um país de esquecidos / Humilhados, ofendidos e sem direito ao porvir", denunciou na letra do country Onde jaz meu coração (1984), música que o autor lançara há nove anos em outro álbum, Cenas do próximo capítulo (1984), em que tentou escrever um futuro para si mesmo. Mote das impressões reportadas em Notícia de terra civilizada (Belchior e Jorge Mello), a mais melodiosa das composições inéditas da safra do álbum Bahiuno, a saudade do sertão reverberou ao fim das emoções baratas veiculadas em Ondas tropicais (Belchior e Caio Silvio). Disco conceitual idealizado por Belchior como suíte composta por prólogo, quatro movimentos e epílogo, Baihuno alinhou 16 músicas em 61 minutos. Se a temática das letras soou familiar e por vezes até repetitiva para seguidores de Belchior, o som se caracterizou pela diversidade rítmica. Belchior transitou pelo blues com o toque de grande guitarrista do gênero (Nuno Mindelis) ao fazer o inventário de perdas e danos geracionais em Lamento do marginal bem-sucedido (Belchior), flertou sem jeito com o reggae em Se você tivesse aparecido (Belchior e Gracco), recorreu à batida do rock para vociferar em S.A. (Belchior e João Mouro) contra o desprezo da população vista como pária pelas autoridades – com direito à citação de Eu não sou cachorro, não (Waldick Soriano, 1972) – e incursionou pelo universo da canção radiofônica na vigorosa Balada do amor perverso (Belchior e Francisco Casaverde), denúncia de paixão transmutada em violência. A propósito, Belchior também fez do álbum Baihuno um veículo para propagar insatisfações vivenciadas entre quatro paredes. “Meu bem / Admire meu carro e goze sozinha / Enquanto fumo um cigarro / Mas, cuidado, atenção! / Oh, não vá mais quebrar nenhum coração…”, advertiu, mordaz, em Elegia obscena (Belchior, 1988), música que – tal como a já citada composição Arte final – Belchior reaproveitou do repertório do álbum Elogio da loucura (1988). Disco que apagou qualquer traço ufanista ao expor os tons já desbotados da aquarela do Brasil, Baihuno rasgou os cartões postais já na épica música-título composta por Belchior com Francisco Casaverde. “Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes, barbárie, devastação / O rinoceronte é mais decente do que esta gente demente do Ocidente cristão”, sentenciou em 1993 no fim da música-título Baihuno com versos que soam impressionantemente atuais em 2020. Voltando na espiral do tempo, Num país feliz (Belchior e Jorge Mello) radiografou a inocência indígena antes da chegada dos colonizadores, prólogo de história de final infeliz, como apontou Quinhentos anos de quê? (Eduardo Larbanois em versão de Belchior) entre questões incômodas feitas por este disco em que Belchior jamais fugiu à luta. Senhoras do Amazonas (1984) – parceria de Belchior com João Bosco que o artista mineiro apresentara nove anos antes no álbum Gababirô (1984) – partiu desse universo indígena para ecoar a devastação ambiental da floresta brasileira, poeticamente apresentada como símbolo do poder feminino. Na conclusão da narrativa do álbum Baihuno, o cantador exaltou a civilidade e a delicadeza em Viva la dolcezza (Belchior e Gracco) no mesmo tom suave com que o trovador migrante se despediu do ouvinte com o tema folk Até mais ver (Belchior em adaptação de poema do russo Serguei Iessienin), chegando com fôlego ao fim de disco caudaloso, por vezes excessivo, mas sempre contundente. Talvez desgostoso com a pouca repercussão de Baihuno, disco editado por gravadora sem munição pesada no exército fonográfico, Belchior nunca mais gravaria outro álbum autoral. Como o futuro não chegou para o artista, Belchior passou a se nutrir do glorioso passado, promovendo sessões de nostalgia da modernidade em série de discos e shows de tom revisionista. Até sumir literalmente antes da definitiva saída de cena, há três anos, em abril de 2017. Foi-se o cidadão latino-americano sem dinheiro no banco e com dívidas. Mas também com obra que permanecerá para sempre na história da música-brasileira. Obra cujo suprassumo ficou concentrado na década de 1970, mas que também abrangeu álbuns coerentes álbuns posteriores como o ambicioso Baihuno.