Parceiro fundamental de João Bosco e Guinga, o compositor carioca morre aos 73 anos e deixa uma das obras mais engenhosas da história da MPB pela escrita feita no fio da navalha. ♪ OBITUÁRIO – Cronista lapidar das querelas do Brasil, Aldir Blanc Mendes (2 de setembro de 1946 – 4 de maio de 2020) deixa o nome eternizado como um dos maiores e mais engenhosos letristas da música brasileira rotulada como MPB ao sair de cena aos 73 anos, na madrugada desta segunda-feira, 4, na cidade natal do Rio de Janeiro (RJ). Projetado a partir de 1972 como parceiro fundamental do mineiro João Bosco, o carioca Aldir Blanc foi compositor que o tempo não poderá esquecer, para citar verso do bolero Resposta ao tempo (1998), criado com Cristovão Bastos e popularizado na voz de Nana Caymmi. Letrista que escreveu com o fio da navalha, Aldir singrou mares da saudosa Guanabara como mestre-sala de versos que reportaram páginas infelizes da história do Brasil e da privacidade de lares nem sempre doces. No cancioneiro de Aldir, o sangue esguichou tanto do corpo estendido no chão – vítima da violência cotidiana da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – como do coração pisoteado por ingratidões e desilusões amorosas. Se Aldir veio ao mundo a fórceps, tirado com aflição da barriga da mãe em parto alongado que deixaria sequelas na mãe (e talvez de forma inconsciente no filho), a entrada no universo da música se deu com naturalidade. Promissor baterista que chegou a integrar o grupo GB-4, Aldir acabou se tornando um letrista cheio de ritmo que acompanhava o suingue das melodias para as quais escrevia versos. A primeira parceria, com Sílvio da Silva Júnior, foi aberta em 1964 e, seis anos depois, gerou o primeiro sucesso do cancioneiro de Aldir, Amigo é pra essas coisas (1970), samba composto em 1968 com melancólica letra escrita em forma de diálogo, difundido nas vozes do grupo MPB4. A partir de 1969, Aldir desenvolveu parceria com César Costa Filho, compositor do qual foi colega no Movimento Artístico Universitário (MAU). Com essa parceria, versos de Aldir ganharam as vozes de cantoras como Clara Nunes (1942 – 1983), Elis Regina (1945 – 1982) – cujo álbum Ela, lançado em 1971, foi batizado com nome de composição da dupla – e Maysa (1936 – 1977). Desentendimento entre os compositores por questões ideológicas ceifou a parceria no auge, em 1971, e levou Aldir a amputar essa parcela do cancioneiro em revisões posteriores da obra. Contudo, a ruptura nem foi sentida pela MPB porque abriu caminho para a parceria que Aldir já desenvolvia com João Bosco – a quem tinha sido apresentado em 1969 por amigo comum – entre encontros nas cidades de Rio de Janeiro (RJ) e Ouro Preto (MG), cidade do estado natal do cantor mineiro nascido em Ponte Nova (MG) e já então em processo de migração definitiva para solo carioca. Lançada em 1972 no Disco de Bolso em que o jornal O Pasquim apresentou João Bosco ao Brasil com a gravação de Agnus sei, música de contorno barroco à mineira, a parceria de Aldir com Bosco cresceu de tal forma ao longo dos anos 1970 que a dupla se tornaria uma das mais importantes de toda a história da MPB pela força das crônicas afiadas que expuseram as fraturas da sociedade entre delírios cariocas. Atenta aos sinais, Elis avalizou de imediato a parceria ao pôr a artilharia vocal a serviço do samba Bala com bala, lançado pela cantora no álbum Elis (1972). Com tal atitude, a cantora obteve a primazia de ouvir antes a produção profícua da dupla naquela década para escolher o que queria lançar. Em janeiro de 1982, Elis Regina saiu de cena antes da desativação da parceria de Aldir e Bosco. Por razões que permaneceram nebulosas (embora ambos sempre tenham sustentado que o afastamento foi natural…), a produção da dupla começou a se diluir na primeira metade dos anos 1980 até ser interrompida em 1986 com a composição do samba João do Pulo, gravado por Bosco no álbum Cabeça de nego (1986). A retomada do contato aconteceu somente 13 anos depois, em 1999, mas a parceria em si seria reaberta somente em 2005 com a criação do samba Toma lá, dá cá, composto para a abertura da série homônima estreada pela TV Globo em 2007 e nunca registrado em disco. Outras músicas vieram (algumas até ficaram inéditas), mas, em que pese a afinidade entre melodista e letrista, a repercussão popular jamais foi a mesma dos anos 1970, década áurea em que Blanc e Bosco pareceram um só compositor tamanha a afinidade. Médico que abandonou o ofício após a morte das filhas gêmeas em janeiro de 1974, tragédia que traumatizou Blanc e potencializou as estranhezas do temperamento arredio de um artista desde então cada vez mais recluso, o letrista nunca parou no tempo. Na sequência da dissolução do elo musical com João Bosco, Aldir firmou parceria expressiva com o vizinho Moacyr Luz – carioca orgulhosamente suburbano e tijucano como o letrista – a partir da segunda metade dos anos 1980 e, com Guinga, construiu uma das obras mais sofisticadas da música brasileira da década de 1990, propagada na voz da cantora Leila Pinheiro no álbum Catavento e girassol (1996). Mais recentemente, Aldir afiou a pena ao letrar Valhacouto (2019) na abertura da parceria com o sambista paulistano Douglas Germano. Salgueirense boêmio, o letrista radiografou o Rio e o Brasil com poesia crua que conciliou lirismo e aguda consciência social. Por isso, o tempo jamais poderá esquecer Aldir Blanc Mendes, nome fundamental da música popular brasileira.