
Capa do álbum 'Sandra!', de Sandra de Sá Jejo Cornelsen ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Sandra!, Sandra de Sá, 1990 ♪ Como muitos intérpretes negros associados ao funk e ao soul brasileiro dos anos 1970 e 1980, Sandra de Sá sofreu preconceitos e pressões da indústria fonográfica para gravar repertório mais pop. Cantora carioca revelada em 1980 na plataforma nacional do festival MPB-80, produzido e transmitido pela TV Globo, Sandra conseguiu gravar três álbuns iniciais dentro do genuíno universo musical black do Brasil entre 1980 e 1983. De 1984 em diante, essa cantora de voz grave e calorosa abriu mais o leque estilístico do repertório. Sandra acertou quando gravou samba para a abertura da novela Partido alto (TV Globo, 1984) – a obra-prima Enredo do meu samba, parceria de Ivone Lara (1922 – 2018) com Jorge Aragão – e quando fez álbum mais pop e eclético, Sandra Sá (1985), um dos títulos mais obscuros da discografia da artista. Contratada pela gravadora RCA em 1985, a cantora viveu a fase de maior sucesso comercial com as edições dos álbuns Sandra Sá (1986) e Sandra de Sá (1988), ambos promovidos com aliciantes canções de (des)amor compostas em escala industrial para as FMs da década. O disco de 1986 soou inclusive como greatest hits tanta a quantidade de sucessos radiofônicos gerados pelo repertório de apelo mais popular. Contudo, a permanência garantida nas playlists da época pareceu ter provocado certa insatisfação na cantora pela falta de autonomia na escolha do repertório. Tanto que, em 1990, Sandra virou o disco e a mesa com a ajuda do jornalista e compositor Nelson Motta, produtor ideológico de um dos melhores e mais arejados álbuns de uma carreira irregular que contabiliza 40 anos em 2020. Lançado no segundo semestre de 1990, Sandra! rejeitou a engessada fórmula do sucesso da RCA (na época já denominada BMG) e, por isso mesmo, foi solenemente minimizado pela gravadora. O que reduziu o alcance deste disco dedicado por Sandra ao amigo Cazuza (1958 – 1990), então recentemente falecido em julho daquele ano. Com exceções do funk pop Arrocho (Mu Chebabi, Hubert e Robertinho Freitas) e de Blue eyes (Jorjão Barreto e Ronaldo Barcellos), balada apaixonada que soou similar a tantas gravadas antes pela cantora por interferências artísticas da BMG, o repertório do álbum Sandra! foi composto por iguarias, degustadas pela intérprete sob a direção musical de Guto Graça Mello. A começar por Slogan (1973), funk de autoria de Cassiano, fino estilista do soul nacional que gravara a música há 17 anos no segundo álbum solo. O charme da gravação de Sandra foi a junção da cantora com Djavan e Marina Lima em trio tão inusitado e harmonioso. Do mesmo álbum Apresentamos nosso Cassiano (1973), Sandra e Nelson Motta recuperaram o funk folião Cinzas, arranjado no melhor estilo Black Rio por Serginho Trombone (1949 – 2020) com direito a gritos de guerra dos bailes da pesada na letra. Na mesma linha black, mas com outra pegada, a regravação do funkaço Eu quero alguém (1989) escancarou a urgência verborrágica de Cazuza, letrista da música de Renato Rocketh, gravada com toque de rap. Como Nelson Motta revela no faixa-a-faixa escrito para o encarte do álbum (lançado em LP e em raríssimo CD de tiragem limitada), Eu quero alguém entrou em Sandra! quando o disco já estava em tese fechado com 11 faixas. Embora Cazuza já tivesse gravado Eu quero alguém no álbum Burguesia (1989), a cantora – a julgar pelo relato de Motta – somente prestou a devida atenção na música quando Rocketh foi contratado para tocar como baixista no show de lançamento deste disco de Sandra. Afropop de Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos, Mandela celebrou a então recente liberdade do ativista político africano Nelson Mandela (1918 – 2013), que saíra da prisão em fevereiro de 1990 para continuar a luta contra o apartheid, câncer extirpado da África em 1994. Com os olhos voltados para o apartheid social do Brasil, Sandra deu voz a Charles Anjo 45 (Jorge Ben Jor, 1969) com o baticum do grupo afro-baiano Olodum, erguendo ponte que ligou as comunidades cariocas ao Pelourinho, epicentro do orgulho negro de Salvador (BA). Duas versões em português de canções norte-americanas – ambas escritas por Nelson Motta – mantiveram a classe do álbum em tons mais serenos. Como um rio era versão de Cry me a river (Arthur Hamilton, 1953), balada jazzy e bluesy popularizada na gravação lançada em 1955 pela cantora norte-americana Julie London (1926 – 2000). Já Love will lead you back (1989) era balada então recente da compositora Diane Warren que virou Quem é você na aveludada gravação de Sandra, feita por sugestão do executivo Mariozinho Rocha para a trilha sonora da novela Mico preto (TV Globo, 1990) e, por isso mesmo, escolhida pela gravadora BMG para promover (sem real empenho) o álbum nas rádios e TVs. Dentro das fronteiras musicais dos Estados Unidos, a cantora gravou dois blues no disco, um em bom português e outro no original em inglês. Ninguém comigo agora era blues inédito de Roberto Frejat, roqueiro que sempre cultuou o gênero, like a rolling stone. Já Send to me the electric chair (George Brooks, 1927), era blues feminino, altivo, empoderado, que fora amplificado pela voz de Bessie Smith (1894 – 1937). Não bastasse a alta qualidade do repertório do álbum, encerrado com a balada Imensamente só (Reinaldo Arias e Nelson Motta), flash lindo e melancólico de fim de festa, Sandra de Sá estava no auge da forma vocal em 1990, elevando os tons quando necessário, mas dosando o canto com a sofisticação das grandes intérpretes. Sem intensas ações de marketing na promoção, o álbum Sandra! jamais obteve o reconhecimento popular a que fazia jus, o que motivou a volta de Sandra de Sá para o padrão pop da gravadora com o álbum Lucky! (1992). Mas ficou na história este disco de 1990 que merece ser descoberto. Por tanta beleza esquecida no baú, o álbum Sandra! ainda justifica o ponto de exclamação do título e causa espanto após 30 anos.