Capa do álbum 'Quanta', de Gilberto Gil Arte de Refazenda ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Quanta, Gilberto Gil, 1997 ♪ Quando Gilberto Gil encerrou ciclo revisionista iniciado com o disco ao vivo Unplugged (1994), gravado na (então nova) série Acústico MTV e editado sem o logo da emissora de TV, o cantor, compositor e músico baiano começou a idealizar álbum autoral com músicas inéditas. Gil entrou em estúdio em julho de 1995, mas esse álbum, Quanta, somente veio ao mundo em abril de 1997, quase dois anos depois, e se revelou um dos títulos mais arrojados da discografia de Gil. Até por ter se transformado em álbum duplo conceitual, com 26 músicas formatadas em dispendiosa produção orquestrada por Liminha. Quanta versou sobre ciência e arte e, nesse contexto, fez todo sentido a regravação do samba-enredo justamente intitulado Ciência e arte (Cartola e Carlos Cachaça), composto para o desfile da escola de samba Mangueira no Carnaval de 1947 com letra que saudou o cientista paranaense Cesar Lattes (1924 – 2005). O álbum Quanta legou somente um sucesso para Gil, a canção Estrela, incluída na trilha sonora da novela A indomada (TV Globo, 1997) e representante da terceira ponta do triângulo conceitual do disco, a fé, ingrediente temperado com a ciência na receita de Pílula de alho. Composição de pegada nordestina, o baião Pílula de alho havia sido encontrado pelo pesquisador musical Marcelo Fróes ao mergulhar no acervo do artista baiano na década de 1970 para a produção da caixa de CDs Ensaio geral (1999). Desse material inédito que veio à tona nos anos 1990, Gil também aproveitou no álbum Quanta a já mencionada canção Estrela e a então perdida Sala do som, música das sessões de gravação do álbum Refavela (1977), composta em homenagem a Milton Nascimento e gravada em Quanta em clima de bossa nova, com reverência a João Gilberto (1931 – 2019). Milton Nascimento – cabe lembrar – também marcou presença no álbum como convidado de Gil no canto da música-título Quanta. Compositor que sempre versou sobre as conquistas da ciência, como atestaram a criação em 1966 e a gravação em 1967 da música Lunik 9, Gil havia revolvido raízes com antenas ligadas na modernidade no anterior álbum de inéditas, Parabolicamará (1991), o primeiro após sequência de discos de tom mais pop, editados ao longo da década de 1980. Em conexão com o disco de 1991 e com a vertente tecnológica do cancioneiro de Gil, o compositor mirou o universo astronômico em Nova (parceria de Gil com Moreno Veloso) sob a ótica lírica do misticismo romântico, olhou para o céu com consciência social na canção em francês La lune de Gorée (parceria com o conterrâneo letrista José Carlos Capinam), propagou o cibernético samba Pela internet – lançado pioneiramente na rede em 1996 – e reverberou Vendedor de caranguejo (Gordurinha, 1958), mergulho contemporâneo na lama rítmica de tempos menos modernos. Com abordagem sincrética da fé adicionada ao coquetel de ciência e arte, o compositor criticou a indústria da religião em Guerra santa (música previamente apresentada no fim de 1995 no programa Fantástico, da TV Globo), alfinetou a indústria da medicina na canção Chiquinho Azevedo (baseada em fato real acontecido em 1975 no Recife – PE, como informa nota sobre a faixa no encarte do CD), louvou divindades no passo da Dança de Shiva, saudou o poder das folhas curativas sobre a medicina alopata em Água benta e voltou a pisar no terreiro afro-baiano com Opachorô e com o ijexá O ouro e o marfim, saudação à arte soberana de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994). Com a crença de que a arte é irmã da ciência, e de que ambas também podem ser regidas por preceitos místicos, Gil propagou a filosofia do samba Pop wu wei (dos versos “O movimento está para o repouso / Assim como o movimento está para o gozo”), deu voz às rimas exatas com que o parceiro Carlos Rennó construiu a letra de Átimo de pó e reverberou o jogo de palavras de outro parceiro bissexto, Arnaldo Antunes, autor da canção A ciência em si, primeira das 13 músicas do disco 2 na disposição do álbum original (cada disco contabilizava 13 músicas). Com o repertório dissolvido em CD simples editado pela gravadora Warner Music na sequência da edição do CD duplo original, o álbum Quanta começou a ser gravado com arranjos de Sérgio Sá (1953 – 2017) em sessões que geraram faixas como Objeto sim, objeto não. Contudo, parte do disco foi refeita por Gil ao longo de 1996 sem que o álbum tenha perdido unidade ao ser apresentado em 1997 com as fartas 26 faixas. Em repertório que incluiu música então inédita da parceria de Jorge Mautner com Nelson Jacobina (1953 – 2012), Labirinto, Gil reacendeu a chama da bossa nova no toque sereno do violão com que conduziu a canção Fogo líquido. A mesma serenidade pautou a bossa da gravação da balada O lugar do nosso amor. Ainda nesse clima suave, de paz no coração, Gil ainda reverenciou o artista multimídia Mário Lago (1911 – 2002) na poesia da canção O mar e o lago. Encerrado com o canto falado de Objeto ainda menos identificado, composição de Lucas Santtana com Moreno Veloso (produtores da faixa turbinada com colagem de vozes e ruídos sampleados que diluíram intencionalmente a atmosfera serena do disco 2), o álbum Quanta expandiu no tempo e no espaço o horizonte temático do cancioneiro de Gilberto Gil. Quanta foi disco em sintonia com o espírito aguçado da obra de um artista que faz arte com o rigor dos cientistas e com a fé de quem acredita no poder do invisível, inclusive sobre a criação da deusa música.