Capa do álbum 'O marginal', de Cássia Eller Ricardo Malta ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – O marginal, Cássia Eller, 1992 ♪ Fera indomável no palco, Cássia Rejane Eller (10 de dezembro de 1962 – 29 de dezembro de 2001) teve o canto domesticado pela indústria do disco em alguns momentos de trajetória fonográfica iniciada em 1990 e encerrada precocemente 11 anos depois. O álbum Cássia Eller (1994) foi uma primeira tentativa – relativamente bem-sucedida – de enquadrar a cantora carioca (de vivência brasiliense) na moldura pop radiofônica da época. O reposicionamento mercadológico de Cássia nesse terceiro álbum de 1994 foi efeito do susto levado pela então nova diretoria da gravadora Polygram com o resultado comercial do segundo álbum da artista, O marginal, lançado em julho de 1992 com título que já deu a pista certeira de disco que comeu pelas bordas em sintonia com jorro punk arremessado pela cantora no álbum inicial, Cássia Eller (1990), lançado dois anos antes. Gravado entre janeiro e abril daquele ano de 1992, com produção musical orquestrada por Wanderson Clayton sob a cúmplice direção artística de Mayrton Bahia, O marginal resultou no álbum menos ouvido e menos vendido da discografia da artista. Já na abertura do disco, Cássia mostrou que transitava pelas margens, por esquinas inimagináveis pelo mineiros do clube de Beto Guedes e Marcio Borges, compositores de Caso você queira saber (1973). Música obscura, lançada há então 19 anos em disco coletivo dividido por Guedes com Danilo Caymmi, Novelli e Toninho Horta, Caso você queira saber reapareceu transmutada, sinuosa e roqueira, no canto intenso de Cássia. Bicho solto, Cássia Eller deu voz em O Marginal a músicas de compositores da margem gauche do rio. No repertório de contorno vanguardista, tinha composição do arisco Itamar Assumpção (1943 – 2003), representado pela então inédita Sonhei que viajava com você, música que o Nego Dito gravaria somente em 1993. Tinha também Luiz Melodia (1951 – 2017), de quem Cássia regravou Sensações (1987) – com suingue funky turbinado com toque de blues em levada que incluiu passagem jazzy – e Amnésia, música então inédita, mais marota, também embalada em batida funkeada. Rock assinado pela própria Cássia Eller, em parceria com o baixista Tavinho Fialho (1960 – 1993) e Luiz Pinheiro, Eles amplificou o recado da liberdade sexual homoafetiva já dado pela cantora no álbum anterior com a regravação de Rubens (1986), música explicitamente gay de Mário Manga. A propósito, Manga reapareceu no álbum O marginal como parceiro de Leda Pasta em Aquele grandão, rock então inédito, amplificado pelas guitarras de Nelson Faria. Mesmo quando enveredou por outros ritmos, O marginal se impôs como disco de atitude roqueira. Até porque foi um disco que falou sem pudores de sexo ao reverberar o rock Bobagem (Rita Lee e Lúcia Turnbull, 1980) em gravação que evidenciou, ao fim, a largura do baixo de Tavinho Fialho, pai do filho de Cássia, Francisco Ribeiro Eller, nascido uma semana após a morte de Fialho em acidente de carro. Embora de origem carioca, Fialho era músico associado à Vanguarda Paulista por ter tocado em discos e shows emblemáticos de Arrigo Barnabé, compositor gravado por Cássia no primeiro álbum. O que reforçou a conexão de O marginal com o primeiro álbum de Cássia Eller. Duas composições lançadas em 1967 pelo guitarrista Jimi Hendrix (1942 – 1970), o blues-rock Here my train a coming' e o rock If six was nine, encerraram o álbum, como aperitivos do show de blues feito por Cássia com o guitarrista Victor Biglione – show gravado em estúdio na mesma época de O marginal (com produção musical de Biglione e Zé Nogueira) para ser editado em disco, mas nunca efetivamente lançado. If six was nine, a propósito, apareceu no disco em longo registro ao vivo captado em apresentação da cantora em Aracaju (SE), mas sem Biglione, também ausente da gravação de estúdio de Here my train a comin'. O take de If six was nine foi captado com a toque incandescente da guitarra de Nelson Faria, músico fundamental – assim como o baterista Élcio Cáfaro – na arquitetura do disco mais marginal da obra de Cássia Eller. Seja vocalizando o tema instrumental Comédia (Tatá Spalla) ou dando voz a Teu bem (Paulo Barnabé, 1987), música da alternativa Patife Band, Cássia Eller esbanjou personalidade em O marginal, álbum batizado com suingado rock de Cássia com Hermelino Neder (outro compositor presente no disco de estreia da cantora), Zé Marcos e Luiz Pinheiro. “Chama esse teu louco / E diga: são / Faz do teu delito / O vão / Que te permite ver o sol”, receitou a cantora em versos da música-título. O marginal é álbum que flagrou Cássia Eller em estado bruto, à margem, sã, sem compromissos com o mercado. Analisado em retrospectiva, o disco soa 28 anos depois como um dos retratos mais nítidos dessa fera nunca domada no palco. Mesmo que tenha posteriormente abrandado o tom em álbuns igualmente inspirados, caso sobretudo do manso Com você… Meu mundo ficaria completo (1999), Cássia Eller sempre pareceu mais fiel ao que mostrou nos dois primeiros álbuns. Por isso mesmo, O marginal é disco a ser descoberto em qualquer tempo.