Capa do álbum 'Vida', de Chico Buarque Arte de Elifas Andreato ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Vida, Chico Buarque, 1980 ♪ Tendo eleito Chico Buarque como um dos alvos preferenciais, os censores ladraram no Brasil ao longo dos anos 1970 sem impedir que a caravana do cantor e compositor carioca passasse garbosa e vitoriosa na década áurea da produção do artista. Décimo álbum solo gravado em estúdio por Chico para o mercado fonográfico brasileiro, Vida encerrou a década ao ser lançado em 1980 com produção musical orquestrada por Sérgio de Carvalho (1949 – 2019). Ou, dependendo da perspectiva, deu início à discografia do cantor nos anos 1980 ao ser posto nas lojas com capa que expôs o tempo e o artista no traço de Elifas Andreato. Seja como for, Vida encadeou 11 músicas em repertório inteiramente autoral que, ouvido 40 anos após a edição do álbum, soa como best of do compositor. Uma das muitas compilações possíveis de Chico, cabe ressaltar, pois cada disco do cantor na fase 1966 – 1984 alinhou um punhado de grandes canções que ecoaram em todo o Brasil. A peculiaridade do repertório de Vida é que boa parte das músicas ficou primordialmente associada a outras vozes. Música-título do álbum, Vida ganharia registro marcante no canto dramático de Maria Bethânia em gravação de disco ao vivo captado no show Nossos momentos (1982). Contudo, a abordagem de Chico é expressiva e merece atenção, inclusive pelo arranjo de Francis Hime, criado com cordas que evidenciaram a tensão da letra. A propósito, Vida foi álbum valorizado pela presença de Francis Hime como arranjador de dez das 12 músicas. A moldura orquestral de Hime resultou sempre precisa. Uma dessas dez músicas foi De todas as maneiras, outra composição mais conhecida na voz de Bethânia em gravação feita pela cantora dois anos antes para o álbum Álibi (1978). E o que dizer de Bastidores? Composição feita para Cristina Buarque, cantora que a lançou em 1980, Bastidores teve associação imediata (e permanente) com a voz passional de Cauby Peixoto (1931 – 2016), cantor que também gravou a música naquele mesmo ano de 1980. Da mesma forma, o samba afro Morena de Angola ficou definitivamente associado ao canto iluminado de Clara Nunes (1942 – 1983), cantora que lançou a música como título do álbum que editou também em 1980. Em contrapartida, o samba Deixe a menina ficou conectado com o autor, evoluindo em Vida em clima de gafieira, mostrando que, em 1980, Chico Buarque já mostrava mais desenvoltura como cantor. Celebração poética do amor entre mulheres, Mar e lua era tema lírico composto por Chico para a peça Geni, da atriz Marilena Ansaldi – assim como a já mencionada música-título Vida. Mar e lua ganhou registros quase simultâneos de Chico e de Simone, cantora que acertaria o tom da canção na regravação feita 13 anos depois para o álbum Sou eu (1993). O registro de Chico foi adornado por cordas, abundantes na confecção do álbum Vida. Além de poetizar o amor entre mulheres, Chico também deu voz a um travesti na letra de Não sonho mais, música nervosa de tom nordestino, cujo arranjo simulava o fluxo veloz de um trem (ou de um pau-de-arara). Tema da trilha sonora do filme República dos assassinos (1979), Não sonho mais também foi abordada por Elba Ramalho em gravação feita para o álbum Ave de prata (1979) que rivalizou em força com a de Chico, embora a música seja mais talhada para o canto então rascante da intérprete paraibana. Única das 12 músicas do repertório do álbum Vida que permaneceu esquecida, a ponto de somente ter merecido duas obscuras regravações (de Adriana Calcanhotto e Clara Sandroni, em 1999 e 2010, respectivamente) ao longo desses 40 anos, o samba Já passou foi a joia de menor quilate de álbum em que Chico também apresentou Qualquer canção e que regravou Fantasia, música lançada no ano anterior pelo MPB4 no álbum Bons tempos, hein?! (1979). O grandioso arranjo de Francis Hime deu tom épico a Fantasia. Com a habitual soberania, Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) marcou tripla presença em Vida como parceiro, pianista e arranjador de Eu te amo, canção feita para o filme homônimo de Arnaldo Jabor, embebida em sensualidade romântica e dividida por Chico com a cantora mineira Telma Costa (1953 – 1989). Já Roberto Menescal foi o parceiro (bissexto) de Chico e o arranjador de Bye bye Brasil, tema-titulo do filme de Carlos Diegues estreado em 1979. Na letra, Chico enfileirou imagens sem filtros de um Brasil que resistia aos desmandos da ditadura. Bye bye Brasil mostrou que, sim, a caravana de Chico Buarque de Hollanda passou gloriosa pelo país, cheia de vida, imune ao ladrar dos cães dos anos 1970.