Extraídas de programas de rádio veiculados entre 1946 e 1949, gravações inéditas mostram a influência da música norte-americana na formação do conjunto. Os Cariocas, em formação dos anos 1940 Divulgação / Filme 'Eu, meu pai e Os Cariocas' ♪ MEMÓRIA – É fácil entender porque, das 12 gravações inéditas do conjunto vocal Os Cariocas apresentadas pelo músico e pesquisador paulista Gabriel Gonzaga no blog Girando no prato, metade mostra o grupo dando vozes refinadas a pérolas da canção norte-americana. É que os grupos vocais norte-americanos foram as matrizes iniciais de conjuntos similares que se formaram no Brasil e no mundo a partir da década de 1930. Mesmo com o D.N.A. personalíssimo do cantor e arranjador vocal Ismael Netto (7 de dezembro de 1925 – 31 de janeiro de 1956), paraense que formou em 1942 esse conjunto que seria uma das perfeitas traduções da bossa carioca ao longo dos 74 anos de vida, Os Cariocas também beberam muito da influência do jazz (sobretudo da era da swing) nessa fase inicial. Por isso, a seleção inclui os foxes That's your red wagon (Don Raye, Gene de Paul e Richard M. Jones, 1946), Everybody loves my baby, my baby (Al Nevins, Artie Dunn e Mortie Nevins, 1924), Old man Harlem (Hoagy Carmichael e Rudy Vallee, 1933), Oh, lady be good! (George Gershwin e Ira Gershwin, 1924) e On the sunny of the street (Jimmy McHugh e Dorothy Fields, 1930). Por ter ficado dissociado das vozes dos Cariocas ao longo do tempo, esse repertório valoriza ainda mais esses registros inéditos, extraídos do arquivo da Rádio Nacional, onde foram feitos entre 1946 e 1949 em programas da então hegemônica emissora de rádio que projetava músicas e ídolos com alcance realmente nacional. Somente o malabarismo vocal dos Cariocas em Oh, lady be good! – em abordagem irradiada em 1º de setembro de 1948 no programa Um milhão de melodias – já justificaria a existência desse tesouro. Dentre as 12 relíquias, o registro do dengoso samba Não quero não! (Assis Valente, 1938) – irradiado em 31 de outubro de 1947 no programa Nas asas de um Chipper – soa especialmente emblemático porque flagra Os Cariocas reverenciando o conjunto antecessor Bando da Lua, intérprete original do samba. Detalhe: em 1947, Os Cariocas ainda nem haviam estreado em disco, o que aconteceria somente em maio de 1948 com disco de 78 rotações por minuto com o então inédito samba Adeus, América (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), fina ironia para quem cantava muito em inglês. Adeus, América reaparece nestes 12 registros inéditos em abordagem com a cantora Emilinha Borba (1923 – 2005), estrela da era de ouro da Rádio Nacional. Nessa fase inicial, o grupo Os Cariocas reunia Ismael Neto – criador de harmonizações vocais de beleza inebriante como as do samba Você já foi à Bahia? (Dorival Caymmi, 1941), reverência ao conjunto Anjos do Inferno irradiada em janeiro de 1949 no programa Um milhão de melodias – e Severino Filho (21 de fevereiro de 1928 – 1º de março de 2016), integrante que assumiu com maestria o comando, a primeira voz e as harmonizações vocais do conjunto em 1956, ano da precoce morte de Ismael. Com Ismael e Severino, estavam também Emmanuel Furtado, o Badeco (morto em outubro de 2014), Jorge Quartarone, o Quartera (falecido em julho de 2011) e Waldir Viviani. Nessas gravações, arranjadas por maestros magistrais como Radamés Gnattali (1906 – 1988) e Guerra-Peixe (1914 – 1993), Os Cariocas mostram que já tinham bossa antes mesmo da bossa que renovou e arejou o repertório do grupo na década de 1960. Tanto que diminuem o ritmo do samba-de-breque Risoleta (Raul Marques e Moacir Bernardino, 1937) no tom macio e sereno de gravação irradiada em outubro de 1949 no programa Dicionário Toddy. Dessa mesma apresentação no programa da Rádio Nacional, o blog Girando no prato também traz à tona o samba-canção Marina (Dorival Caymmi, 1947) em número em que Os Cariocas abrem espaço para a voz solista do cantor Nelson Gonçalves (1919 – 1998), intérprete original da música, e um registro (com arranjo épico) do samba-jongo Salve Ogum (Mário Rossi e Pernambuco, 1948). De valor inestimado para seguidores da música brasileira, o tesouro revelado por Gabriel Gonzaga no domingo, 29 de março, atesta que Os Cariocas foram modernos desde sempre.