
Capa do álbum 'Olho d'água', de Maria Bethânia Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Olho d'água, Maria Bethânia, 1992 ♪ Por ser artista de personalidade indomável, imune aos caprichos e modismos da indústria do disco, Maria Bethânia amargou períodos de baixa visibilidade no mercado fonográfico. Lançado em 1992, o álbum Olho d'água veio ao mundo numa dessas fases em que Bethânia estava recolhida como ostra produtora de pérolas para poucos. Fiel ao universo poético e musical da intérprete, impregnado da religiosidade sincrética que move a fé da cantora, Olho d'água é disco para dentro, interiorizado, como Ciclo (1983) e A beira e o mar (1984), álbuns fora do tom tecnopop da década de 1980. Talvez por isso mesmo, Olho d'água permaneça, 28 anos após o lançamento, como um dos títulos menos ouvidos da discografia da cantora. Pautado pelos violões, alguns tocados por Jaime Alem, produtor musical e arranjador do álbum, Olho d'água é disco acústico de repertório pouco conhecido que inclui, por exemplo, obscura parceria de Caetano Veloso com Djavan, Invisível, inexplicavelmente nunca gravada pelos autores e por nenhum outro cantor depois de Bethânia. Há outros diamantes ainda mais verdadeiros no veio de Olho d'água, disco batizado com música de Caetano Veloso sobre poema de Waly Salomão (1943 – 2003). Banhada com o ouro da eternidade, Medalha de São Jorge é obra-prima da parceria de Moacyr Luz e Aldir Blanc, compositores que debutavam na discografia de Bethânia em dose dupla. Samba em louvação a Clementina de Jesus (1901 – 1987), Rainha negra também é da lavra preciosa dos compositores cariocas. Pérola também apresentada na correnteza deste Olho d'água, O tempo e a canção é do fino estilista ruralista Renato Teixeira, compositor (em parceria com Almir Sater) de Tocando em frente (1990), sucesso do suntuoso álbum anterior com que Bethânia comemorara 25 anos de carreira. E por falar em sucesso, Olho d'água é disco sem hits, embora a gravadora PolyGram tenha feito (algum) esforço para fazer o samba Ilumina (Noca da Portela, Tranka e Toninho Nascimento) tocar nas rádios. Um ano depois, a canção Além da última estrela – parceria de Dominguinhos (1941 – 2013) com Fausto Nilo – chegou a ser incluída na trilha sonora da novela Renascer (TV Globo, 1993), mas a ação surtiu nenhum efeito. Tanto que a canção permanecera esquecida até ser lembrada há dois anos por Elba Ramalho, que a regravou no álbum O ouro do pó da estrada (2018). Por ter obtido tão pouca repercussão, Olho d'água carrega músicas quase nunca revisitadas por outros intérpretes e pela própria Bethânia. Bilhete de despedida (Sueli Costa e Paulo Emílio) é uma delas. Parceria de Roberto Mendes e Jorge Portugal, Vida vã revolveu raízes de Santo Amaro da Purificação (BA), terra natal da artista, ao evocar a cadência da chula, em diálogo com Filosofia pura, música dos mesmos compositores lançada por Bethânia no já mencionado álbum Ciclo (Roberto Mendes assina outras duas músicas em Olho d'água, Búzio e Louvação a Oxum, em parcerias com J. Velloso e Ordep Serra, respectivamente). Sim, Vida vã parece estar em Olho d'água como a sinalizar que tudo é cíclico e ao mesmo tempo imutável na coerente trajetória da artista. Quem achou que Bethânia tinha sido derrotada em 1992 viu com surpresa os dados rolarem um ano após Olho d'água. Em 1993, Maria Bethânia daria a volta (mercadológica) por cima ao abordar o cancioneiro de Roberto Carlos e Erasmo Carlos em álbum majestoso, As canções que você fez pra mim, que a reconduziu ao trono das paradas populares. Mas ficou no mundo este também nobre Olho d'água, disco aberto e encerrado com vinhetas de Sodade, meu bem, sodade (Zé do Norte, 1953) na costura de repertório que inclui regravação de Modinha (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958). Analisado sob perspectiva do tempo nessa quarentena, o álbum Olho d'água justifica o uso do clichê íntimo e pessoal para caracterizar a força que nunca seca da indomável intérprete.