G1 mergulha em lives e relata limites e caminhos: talentos são testados, naturalidade sobressai, 'delay' atrasa duplas sertanejas, faltam remuneração e direitos autorais – e isso é só o início. Com calça de pijama listrada e camiseta estampada com o personagem de animação Taz, Niall Horan, ex-One Direction, procura no Google a letra da próxima música que vai cantar. Chris Martin, sem o resto do Coldplay, aperta os olhos para enxergar os pedidos de fãs na tela do Instagram e ri de si mesmo ao perceber que não lembra como tocar várias músicas. O bastidor virou o show. Casas de músicos são os palcos possíveis no isolamento para conter o coronavírus. As lives, transmissões ao vivo pela internet, ganham milhares de seguidores e até se juntam em festivais. No Brasil, Ludmilla toma cerveja, canta pagode e derruba o celular no chão. Simone e Simaria se perdem no delay. Gloria Groove canta emocionada com a mãe. Sandy chora ao ver Júnior. Na tentativa e erro, as transmissões apontam caminhos para a música pop em quarentena. O G1 fez um intensivão de lives e conversou sobre os desafios de formato, de carreira e até de direitos autorais. Era das Lives: G1 analisa shows ao vivo pela internet, nos tempos da pandemia do coronavírus G1 e Divulgação Chris Martin, do Coldplay, apareceu no dia 16 de março em seu estúdio caseiro, tocou músicas pedidas por fãs e falou por meia hora. Era o início do primeiro grande "festival" deste tipo, o beneficente #TogetherAtHome, que já teve John Legend, Niall Horan e outros. Chris apontou um formato de "talk-show" sob demanda que é seguido por músicos pelo mundo, seja na série dele ou em outros festivais e transmissões avulsas de artistas. Lives de família Em um dos festivais brasileiros, o Música em Casa, Sandy chamou Júnior para uma conversa à distância e chorou de saudade. Os aspectos musicais e familiares têm se misturado nas lives. Sandy, Lucas Lima e Junior se emocionam durante transmissão no Instagram Reprodução/Instagram/sandyoficial Em live que atraiu 40 mil pessoas, Gloria Groove chamou para cantar a pessoa que está fazendo "feat. de quarentena" em casa com ela: sua mãe, Gina Garcia. Fãs choraram (via emojis de choro) com o dueto de mãe e filha em "Um mundo perfeito", da trilha de "Aladdin". "Esse acaba sendo um momento familiar para todo mundo, de muita conexão. As pessoas se viram nisso", diz Gloria ao G1. Dilema sertanejo Outro encontro familiar emocionou fãs: o das irmãs Simone e Simaria. Simone estava em Fortaleza, com o marido, o filho e o irmão. Simaria tinha chegado a São Paulo com o marido e os filhos, após ter dificuldade de voltar da Espanha. Na transmissão conjunta, elas bateram o papo espontâneo de sempre. Mas na hora de cantar, descobriram ao vivo um problemão para as duplas sertanejas nas lives: o delay (atraso) de áudio comum nas transmissões, mesmo pequeno, torna impossível cantar junto à distância. "A gente não imaginava que esse delay podia existir e quando começou a música percebeu isso. A gente ficou triste, mas ao mesmo tempo, conseguiu se desdobrar, cantou cada hora uma música, e depois se alternou nas partes", ela diz. É um desafio para o arranjo que domina boa parte do pop brasileiro hoje: de primeira e segunda voz sertanejas. As duplas brasileiras deram um azar técnico na era das lives – a não ser que estejam juntas em casa. Simone e Simaria em live à distância Reprodução Juntos e isolados Por outro lado, o sexteto de pagode pop Atitude 67 deu a sorte de morar na mesma casa em São Paulo. Eles já estão acostumados, mesmo antes do isolamento, a fazer gravações em casa. Mas na telinha horizontal do Instagram a coisa muda. Eles fizeram a live mais povoada até agora da série Música em Casa. É um alívio entre tantos "momentos intimistas". Em seis cadeiras de praia no jardim da casa, o clima era bom. Mas o som do sexteto captado por celular fica embolado. Parece difícil até de enquadrá-los. Em certo momento, a câmera começa a rodar e para de cabeça para baixo. Mas vale a experiência. "A intenção do projeto é não ser mega produzido. A gente foi na área do churrasquinho, ligou o celular, todo mundo cantando, captando o violão acústico, do jeito que as músicas nascem. Foi bem natural", explica Pedrinho. Atitude 67 Divulgação Quanto vale a live? A live de Chris Martin chegou a superar 300 mil espectadores simultâneos no Instagram. No dia 20, Marília Mendonça bateu 160 mil fãs ao mesmo tempo. É mais gente do que a plateia dos grandes festivais físicos que foram cancelados pelo mundo. Os shows são a maior fonte de renda de artistas e equipes há vinte anos, desde a decadência dos CDs e ascensão do MP3. O streaming voltou a dar boa renda nos últimos anos, mas são os palcos que pagam as contas de artistas grandes e independentes. Ou seguravam. As lives atraem até mais fãs e geram conexão, mas quase nenhuma renda. Estão longe de ser uma luz no fim do túnel da crise financeira que se prevê para músicos trabalhadores como roadies e técnicos. O YouTube permite incluir anúncios nas lives e gerar receita para os donos dos canais. Mas é uma ferramenta geral, não específica para música. Não inclui um sistema de distribuição de direitos autorais nessas lives, por exemplo. Apagão cultural por conta do coronavírus leva artistas a se apresentarem na internet Lives sem alívio Se um artista toca uma música de um compositor em um estádio para 50 mil pessoas, o autor vai arrecadar um bom dinheiro de direitos autorais pela execução pública. E numa live aberta para 300 mil usuários do Instagram, como fica? "A situação que vivemos hoje é muito específica e não estava prevista nos direitos autorais de lugar nenhum", diz o advogado Daniel Campello, da empresa ORB Music. Ele conta que o sistema brasileiro ainda estava se adaptando ao streaming. O YouTube começou a pagar aos autores brasileiros em 2018, após longa discussão, e o Facebook, dono do Instagram, só fez o primeiro pagamento por execuções públicas em março. Tudo se baseava nos dados catalogados de streaming. Nessas lives espontâneas, os intérpretes teriam que informar às plataformas os setlists que tocaram em cada transmissão, o que não acontece. Futuro do negócio Daniel diz esperar que associações de gestão de direitos combinem com as plataformas maneiras claras de se remunerar autores e músicos nessa nova era. Mesmo assim, outros profissionais técnicos continuam sem renda na quarentena. Artistas independentes dos EUA, que não têm a reserva financeira de popstars, já testam alternativas. O Sofa King Fest 2020 lista lives de bandas e cantores indies e links para quem quiser doar para eles e suas equipes. O próprio Daniel Campello conta que tem um projeto com a plataforma de crowdfunding Benfeitoria para criar formatos de lives com alguma forma de remuneração e recompensa aos fãs. O que será do pop? Seja no modelo artístico, tecnológico ou de negócios, estes primeiros dias de lives são apenas o começo da adaptação da música pop à quarentena. "Fico curiosa para saber o que vai acontecer quando a gente sair dessa, o que a gente vai ter feito nesse tempo " diz Gloria Groove. Ela dependia do dinheiro de shows, e agora "estuda como os outros artistas estão administrando". Ao concluir, Gloria cita uma série de terror, mas com esperança: "É muito 'Black Mirror', mas quem sabe não esse jeito que a gente vai achar para estar perto um do outro?" Teresa Cristina, Coldplay e Miley Cyrus estão entre os artistas que estão fazendo apresentações on-line Reprodução/Redes sociais dos artistas