♪ ANÁLISE – Quando o livro Chega de saudade – A história e as histórias da bossa nova foi lançado em outubro de 1990, a bibliografia musical brasileira ainda era relativamente escassa e formada por títulos menos encorpados e/ou sedutores. Então no início da carreira literária de biógrafo, o jornalista mineiro Ruy Castro apontou com Chega de saudade o caminho das pedras na feitura de livros que reconstituíssem a saga de personalidades ou de períodos marcantes da música brasileira. Ou de um gênero musical. Em essência, Chega de saudade é biografia romanceada da música rotulada como bossa nova a partir de 1958. Em 1990, ano do lançamento do livro, a bossa estava quase esquecida no Brasil, mas cultuada no mundo, sobretudo nos Estados Unidos e no Japão. Em 2020, o Brasil já parece ter esquecido novamente a bossa nova, só que a modernidade perene dessa música já teve desde então períodos de revalorização em solo nacional. E o tempo somente fez bem ao livro Chega de saudade, repaginado em 2016 com edição alardeada na nova capa como “revista, ampliada e definitiva”. E, se o livro chega aos 30 anos com o justo status de bíblia da bossa, é porque Ruy Castro entendeu que a bossa nova é João Gilberto (1931 – 2019), estando musicalmente concentrada na batida diferente do violão de João, isto é, na batida com que João mudou a música brasileira ao sintetizar a cadência do samba nas cordas do violão e ao subverter as noções de canto. E também porque Ruy Castro entendeu que a bossa nova é muito do que estava em volta de João ao longo dos anos 1950. Capa da mais recente edição do livro 'Chega de saudade', de Ruy Castro Reprodução Ao historiar a bossa, Castro parte da saga de João Gilberto, que rumou da Juazeiro natal (BA) para Salvador (BA) e, da capital da Bahia, para o Rio de Janeiro (RJ), com escala fundamental em Diamantina (MG). Só que o escritor vai além. Entre as idas e vindas de João na busca obsessiva do sonho de ser alguém (especial) na pequena multidão de músicos e cantores que efervesciam nas noites cariocas, Castro monta o painel de microrrevoluções urbanas que aconteceram silenciosamente nas boates, apartamentos e gravadoras do Rio de Janeiro desde 1948, ano inaugural da narrativa do livro, até 1967. Com texto fluente e leve (repleto de informações, mas sem dados entulhados em cada página, como fazem alguns biógrafos brasileiros da área musical, menos talhados para o ofício), Ruy Castro cruza todos esses caminhos em exposição sedutora da história e das histórias da bossa nova. Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), Carlos Lyra, Dick Farney (1921 – 1987), Johnny Alf (1929 – 2010), Lúcio Alves (1927 – 1993), Nara Leão (1942 – 1989), Newton Mendonça (1927 – 1960), Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), Sylvia Telles (1935 – 1966) e Vinicius de Moraes (1913 – 1980) são personagens que, em determinadas passagens da narrativa, soam tão importantes quanto o protagonista João Gilberto. Porque foram mesmo. Mas são retratados no livro com admiração, mas sem o endeusamento de fãs disfarçados de biógrafos. Acrescida de vasta “cançãografia”, a edição revista de Chega de saudade depura o texto da edição original de 1990. Ainda persistem alguns erros eventuais, como atribuir a Roberto Carlos a autoria da composição de Brotinho sem juízo (Carlos Imperial), gravada em 1959 quando o futuro Rei era mero plebeu que imitava João Gilberto em boates cariocas. Persiste também, aparentemente em menor grau, a minimização pelo autor da obra magistral de Luiz Gonzaga (1912 – 1989), um dos pilares da música brasileira do século XX. Contudo, tais detalhes jamais empanam o brilho eterno de livro que, como a bossa, parece trazer sempre um sopro de novidade.