Pausa no ir e vir de muita gente, a Praça Ary Coelho é o meio do caminho para quem vive ou trabalha no centro, seja para encurtar o trajeto ou descansar alguns minutos à sombra das árvores e aproveitar o ar que parece mais fresco em volta da fonte, o hábito de passar por ali fez com que as pessoas literalmente tropeçassem em livros, arte e poesia na manhã desta quinta-feira, 25 de julho, dia do escritor.
A quebra de rotina foi uma iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, que para celebrar o dia daqueles que registram fatos ou ficção nas páginas em branco e fazem da vida mais leve, resolveu ir até onde o povo está e distribuir livros como quem distribui alimento, saciando a “fome” dos que buscam conhecimento.
O coreto, muitas vezes deixado de lado, ganhou vida com a apresentação do Coral Fronteiras Abertas, com regência do maestro Orion Cruz e da cantora Jane Ribeiro. Há poucos passos do palco improvisado, em meio às pessoas que paravam para observar, a contação de história para adultos e crianças com Sylvia Cesco e Carmém Lúcia, declamação de poesia com os poetas Ruberval Cunha e Ileides Muller. Ao redor, livros espalhados pelos bancos, pendurados em varais amarrados nas árvores, “escondidos” no parquinho para serem encontrados por acaso em meio às brincadeiras dos pequenos e até ao redor da fonte.
Curiosos iam chegando aos poucos, atraídos pela música ou pela plateia que se formava ao redor do coreto, muita gente esbarrou na ação por acaso. A ação trouxe à tona o lado mais cauteloso dos moradores de Campo Grande, que desconfiados se aproximavam tímidos dos bancos forrados de livros e, ao descobrir que os exemplares poderiam ser “adotados”, deixavam a praça com as mãos carregadas e um sorriso no rosto.
“Eu descobri uma coisa hoje, que nunca tinha visto na minha vida. Vi pessoas roubarem livros. Que bom que estão roubando livros! Tem gente que tem fome mesmo, de leitura, de conhecimento”, brinca a professora de língua portuguesa Iolete Moreira, idealizadora do projeto que ocupou a praça. Isso porque a proposta inicial era que cada um levasse apenas um livro para casa, mas a regra acabou de lado quando o gosto pela leitura se tornou evidente e surpreendeu inclusive esta repórter, que foi às ruas na tentativa de encontrar a resposta para a pergunta: “Quem, na era do smartphone e do mundo na palma da mão, ainda leva para casa histórias impressas em papel?”
De acordo com Maria Madalena Dib Mereb Greco, diretora executiva do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, foram arrecadados mil livros para ação que acontece pelo segundo ano consecutivo no Dia do Escritor, quem em 2018 distribuiu 200 exemplares.
Nem sempre acessíveis, ainda há quem ache o investimento caro, veja o hábito como uma atividade elitizada ou precise escolher entre necessidades básicas e o livro, que apesar de alimentar a mente, não enche de fato a barriga ou protege do frio. Por isso, mais do que uma campanha com placas bonitas espalhadas pela cidade, propagandas de TV, rádio ou redes sociais, o incentivo à leitura foi muito mais efetivo na prática com a doação dos exemplares.
Sem o costume de viver com o nariz enfiado nos livros, Hélio Barreto, de 75 anos, confessa que não lê muito, mas enquanto conversa com a equipe de reportagem está com “O Beijo da Morte” nas mãos e conta que por hora, vai ficar só com esse para criar hábito. “Eu gosto muito de saber em relação a esses caras que foram presidentes do Brasil. Este livro conta a história de presidentes que já morreram”, explica e aponta as fotografias de João Goulart, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e Carlos Lacerda, ex-governador do Rio de Janeiro, estampadas na capa.
Com uma edição de bolso de “Poesias de Castro Alves” na mochila, Arthur Tássio, de 22 anos, diz que a leitura atual é uma edição é de família e até mostra as páginas do livro que pertence à avó como prova de mérito da carteirinha de leitor assíduo. Para ele, junto com os exemplares garimpados entre as pilhas distribuídas pelos bancos da praça, cada um é também “uma nova visão, perspectiva de uma realidade” que ainda não viveu, mas que experimenta pelas palavras registrada na página em branco pelos autores. “Acho que a sociedade atual carece de uma presença literária mais latente, tanto por uma questão de mérito próprio, mas de conhecimento, tanto em questão de sociedade como de questões pessoais”.
Artista de rua, Lucas Martins da Silva encontrou livros relacionados ao assunto que mais gosta: arte. Até o momento, ele que diz ter criado o hábito da leitura ainda na adolescência também conta ler pouco nos dias atuais. “Não tinha livros, mas graças ao projeto, vou ter a chance de ler. Estou escolhendo alguns que ainda não li”, explica ao deixar a praça com três exemplares e a promessa de que serão muito bem cuidados.
Mais que a chance de levar para casa livros sobre os assuntos preferidos, Nádila Santos, de 32 anos, vê nos exemplares que carrega nas mãos uma oportunidade para se desconectar. “Em um mundo hoje tudo gira em torno da internet, querendo ou não vivemos ao redor da internet, acredito que a importância de ler um livros é tirar a gente da zona de conforto. Vejo muita gente lendo no celular, para mim aquilo não é ler um livro. Eu gosto do físico, é muito legal porque criamos aquela imaginação, aquela capacidade de viajar”. Para ela, o hábito vem das memórias afetivas, quando via a mãe lendo romances e histórias de ficção, hoje entre os gêneros favoritos dela, uma lista que também inclui biografias e romances históricos, pela lição de vida que trazem.
As amigas Luciana Figueiredo, 18 anos, e Poliana Lopes, 22 anos, também estavam de passagem pela praça, quando a movimentação despertou a curiosidade. Luciana revela que prefere HQs e Mangás, um hábito que herdou de um primo que também é fã do gênero, mas nem por isso deixou de aproveitar a ação para conhecer outros estilos de literatura e levar para casa “O Futuro do Passado”, de Luiz Albuquerque. Filha de professores, a quem Poliana “culpa” pelo interesse pelos livros, ela mostra ser fã de romances e poesia, por causa das “rimas mais melosas, dessas bem cafonas”.
Quase no fim da manhã, Karoline Vieira, 22 anos, chegou quando o palco já estava quase sendo desmontado, mas parou para perguntar sobre os livros expostos e já aproveitou para levar os favoritos para casa. à reportagem ela conta que as primeiras leituras vieram da época da escola, mas que só pegou gosto mesmo na adolescência quando começou a encontrar histórias com uma linguagem, temáticas e capas atraentes mais voltadas para essa faixa etária. O hábito continuou através do celular, por onde ela lê a maioria das histórias de ficção que tanto gosta, mas vai deixar o aparelho um pouco de lado com os novos exemplares adotados na praça. “Sinceramente, eu prefiro no livro, mas como financeiramente é meio apertado, acabo optando pelo PDF. Quando aparece um dinheirinho a mais eu vou e compro”.
Por volta da hora do almoço, apenas duas caixas ainda estavam disponíveis para doação, e até o fim do dia, grande parte dos mil exemplares tinham encontrado um novo dono. Mostrando que, na prática, temos mais leitores que poderíamos imaginar. O que para Iolete só reafirma a necessidade de projetos como esse, que além do incentivo da leitura também busca a valorização dos escritores locais e nacionais.
Fonte: CG News