Raquel Naveira
A hanseníase é uma doença infecciosa causada por bactérias. Antigamente chamada de lepra, termo não mais utilizado. Afetou a Humanidade durante milhares de anos. Um estigma social. Na Idade Média, os leprosos eram obrigados a carregar sinos para anunciar sua presença. Caminhavam desgrenhados pelos vales, marcados por lesões, granulomas, mutilações. Várias são as passagens bíblicas sobre esse tema: Miriã, irmã de Moisés, coberta de placas brancas como a neve; Naamã, o profeta que se banhou sete vezes no rio Jordão; os dez leprosos curados por Jesus, dos quais só um retornou para agradecer o milagre.
Nossa região centro-oeste sempre teve muitos casos de lepra, fogo selvagem e outros problemas de pele. Na década de 40, foi instalada a colônia São Julião para isolar os leprosos. Nessa época prevaleciam o medo e o preconceito. Os pacientes eram afastados de suas famílias e a situação de abandono era lastimável. Mais tarde, voluntários e benfeitores italianos recuperaram o São Julião, administrado pelas Filhas de Maria Auxiliadora. O médico alemão Günter Hans destacou-se pela competência e dedicação à vida dos enfermos. Hoje, o Hospital São Julião, a 15 km do centro de Campo Grande, é um recanto lindo, ladeado de eucaliptos, com casas e pavilhões espalhados junto à nascente de córregos, na mata do cerrado. Tornou-se referência na América Latina no tratamento, prevenção e reabilitação da hanseníase.
Foi ali que viveu o poeta Lino Villachá. A hanseníase se manifestou nele quando ainda era criança. Ficou com grandes sequelas: as mãos atrofiadas, as pernas amputadas, os rins pararam de funcionar, a surdez fez que mergulhasse no silêncio. Mas Lino nunca desanimou. Mexia com computação, dirigia a escola… e escrevia. Versos de um coração que transbordava de sabedoria e emoção. Um dia, esses versos chegaram às mãos de uma menina, Zena, que gostou e mandou-lhe uma carta. Corresponderam-se durante onze anos. Encontraram-se algumas vezes. Ela se formou enfermeira e foi trabalhar no São Julião. Casaram-se na capela do hospital. Uma cerimônia oficiada por anjos e com perfume de violetas. Lino morreu pouco tempo depois, experiente de Deus, capaz de escrever poemas quase preces como este: “Senhor, eu tenho um amigo/ que é muito só,/ porque não Vos conhece/ e não acredita que possais existir./ Sua vida não tem sentido/ e se desespera diante deste infortúnio./ Abri-lhe uma brecha, Senhor,/ para que Vos veja,/ Dai-lhe vossa mão,/ Ele sofre e não sabe porquê.”
Com coragem e rasgar de coração, Lenilde Ramos, jornalista, compositora e escritora, escreveu o livro-depoimento História sem Nome. Ela mergulha no seu próprio drama, o suicídio de sua mãe, a orfandade, a vida no colégio interno e o drama dos habitantes do São Julião, que frequentava levando a música de sua sanfona, conduzida por sua mãe-freira, a religiosa salesiana Silvia Vecellio, luz naquele lugar. O livro é uma verdadeira cruzada pela salvação de almas e corpos. Ferro, fogo, brasas de amor e sangue espirram de suas páginas.
No período da Guerra do Paraguai, o escritor carioca de origem francesa, Alfredo d’Escragnolle Taunay, o depois Visconde de Taunay, andou por essas bandas. Coletou então a base documental para escrever o romance-símbolo de nosso Estado, Inocência, lançado em 1872. É uma espécie de Romeu e Julieta sertanejo. Conta a história de um pai viúvo e rude, que mantinha Inocência, sua bela filha, protegida, trancada em casa como num casulo. Prometera-a em casamento ao tropeiro Manecão. Um dia, Cirino, o jovem doutor, chega à fazenda e fica fascinado pela moça. Inocência também se sente atraída por ele. Uma intensa e proibida paixão toma conta dos dois, motivando-os a enfrentar tudo e todos para ficarem juntos. No seu livro póstumo, intitulado Reminiscências, Taunay conta que conheceu de fato um tal de João Garcia, da cidade de Paranaíba, ao sul de Mato Grosso, que vivia numa casa de morféticos, em que os habitantes estavam contaminados pela lepra. João tinha uma filha na flor dos anos, Jacinta Garcia, que lhe inspirou a personagem Inocência. Jacinta, desgraçadamente, já estava com o mal da lepra. O pai levantou um maço de seus esplêndidos cabelos e mostrou ao escritor o lóbulo da orelha direita tumefato, arroxeado. A radiosa e extraordinária formosura já condenada a servir de pasto à repugnante lepra. Taunay também conversou com um anãozinho, que virou o sinistro e misterioso anão Tico da história e um falso médico que foi transformado no personagem Cirino. À personagem Inocência, Taunay subtraiu o detalhe da lepra, mas a peste andava por lá, impregnada pelas paredes e paragens do oeste.
A medicina trata a lepra, mas é Deus quem a cura. Estamos leprosos, cheios de feridas emocionais, que nos isolam do convívio com nossos semelhantes. A lepra penetra as raízes nervosas e faz com que não tenhamos mais sensibilidade. Estamos cativos de nossos erros imundos, negando a verdade. Não sentimos mais a presença do divino em nós e no outro. É preciso clamar para que as cascas sejam retiradas e voltemos a ter compaixão. Livremo-nos desse mal bruto, que nos cega e nos dá aspecto de leões. Que caiam as escamas e cogumelos de nossos olhos. Que possamos ver.